73. Mortos

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Eu estava cercado por eles. Os fantasmas de meus pecados.
E o pior de tudo foi que Bonnie era testemunha do total estado de desolação e fraqueza que eu demonstrava diante dela, mas não consegui fazer nada além de choramingar e implorar para que aqueles demônios fossem embora. Mas eles nunca iam, estavam sempre comigo em todos os momentos de minha vida, pois eu os havia atraído para mim.
Juro que tentei levantar a cabeça da porcaria da mesa quando ouvi Bonnie arfar de surpresa e conter um grito de susto, porém, uma quantidade exorbitante de mãos frias forçou meu corpo contra a superfície de madeira outra vez. Ouvi quando a taça de vinho do outro lado da mesa entornou com o impacto, manchando a toalha de vermelho.
Apenas torci para aquele som não atrair a atenção de Sol e das meninas. Elas ficariam assustadas com minha situação. Cara, eu já estava assustado.
E como tudo aquilo ainda podia piorar, as vozes começaram o seu cantarolar tenebroso em minha mente.
— Você não pode fugir de nós, Kai — disse uma das garotas que matei anos atrás apenas por um capricho. Eu não sabia qual delas havia dito isso, porque todas elas pareciam ser a mesma coisa amorfa e terrível em meus pesadelos — Vamos estar com você para sempre.
— Estaremos com você até que desista de sua vida medíocre e vazia — sussurrou uma voz muito conhecida, raspando as unhas afiadas em meu braço, deixando uma trilha avermelhada. Josette, minha irmã gêmea. Tive que morder o lábio para conter um gemido de dor — E quando estiver cansado de tudo isso, vamos arrastar a porcaria da sua alma para o mesmo inferno em que vivemos.
Outra mão fria puxou meu cabelo, arrancando alguns fios pela raiz e fazendo com que meu rosto estivesse exposto.
— O inferno que você criou — disse a coisa com a voz de Olívia.
— Não… — sussurrei, incapaz de me mover — Me deixem em paz… Por favor…
Eu já estava naquela situação há tanto tempo que simplesmente não conseguia mais lutar contra aqueles monstros. Não havia mais escapatória para mim, que imaginei que o Mundo Prisão fora o pior dos lugares para se estar. Porém, lá, apenas meu corpo estava aprisionado. Aqui eu estava sendo prisioneiro dentro de minha própria mente e dela não havia como fugir.
— Por favor… — supliquei, prostrado e sem forças.
Eu achava que minha vontade era infinita e que podia combater a loucura que se apossou de mim, mas eu não sabia que estava me perdendo aos poucos entre a realidade e o pesadelo. Aquilo era o verdadeiro significado de terror.
— Vamos acabar com qualquer resquício de você — Luke cantarolou em meu ouvido — E quando implorar para acabarmos com isso, o faremos matar a menina. Porque assim como você… ela nos pertence.
Ouvir isso fez uma onda de adrenalina e desespero se apossar de mim. Tirando forças provavelmente do inferno, consegui ficar de pé de uma só vez e girei nos calcanhares, avançando sobre os demônios que me perseguiam.
— Eu vou matar cada um de vocês! — berrei, apertando o pescoço de uma daquelas coisas que mudava de rosto a cada segundo, se tornando uma daquelas garotas, minhas irmãs, Luke e todas as vítimas de meu passado — Você não vai tocar na minha filha!
Eu estava tão ensandecido que já não enxergava um palmo diante de meus olhos. Minha única meta era proteger Amy a qualquer custo. Nem que precisasse matar metade do mundo para que ela ficasse segura.
Aquela coisa se debatia e lutava contra mim com uma força descomunal, mas eu não deixaria aqueles demônios levarem minha menina. Eles morreriam nas minhas mãos.
Apertei o pescoço daquele ser disforme e frio, seus olhos de um azul brilhante e etéreo, miravam os meus com ódio e um sorriso de escárnio se desenhou em seus lábios. Estava zombando de mim, fazendo piada do meu sofrimento e o da minha filha.
Cheio de fúria, eu não pensei, apenas fiz um movimento rápido com as mãos e ouvi o pescoço daquele monstro estalar. E antes de deixar se cair no chão, pude ver um último rosto, o de Josette. E ela sorria para mim perversamente, como se tivesse ganho aquela disputa.
Não entendi o que estava acontecendo, até aquela névoa de terror e medo se dissipar e, então, quando meus olhos focaram na pessoa caída no chão, eu juro que minha espinha gelou.
— Oh, meu Deus… — sussurrei para mim mesmo, apavorado — Bonnie…
A garota jazia estendida  no piso de madeira com suas pernas e braços espalhados. Seus olhos estavam abertos, mirando o nada e o pescoço dela estava em uma posição perturbadora e anormal.
— Não, não, não… — caí de joelhos e a coloquei sobre minhas pernas cuidadosamente — Bonnie? — a sacudi, tentando de alguma forma fazê-la acordar — Bonnie? Por favor, Bonnie, me perdoa… Bonnie…
Eu a sacudia freneticamente, passando os dedos por seu rosto delicado e macio, esperando que aquilo pudesse fazê-la sair do estado de morte em que se encontrava. Ela era uma vampira, não? Ela se curaria daquilo com toda a certeza, não é? Não, é?!
Uma voz pessimista começou a discordar em minha mente.
Ela não era uma vampira convencional, pois havia sido criada a partir do meu sangue que também não era o de um vampiro comum. A parte humana dela poderia muito bem ser mais forte que a sobrenatural. E isso poderia fazer com que ela não… voltasse da morte.
— Não… — sussurrei, abraçando contra meu peito e sentindo meus olhos arderem — Bonnie… me desculpa… Eu não queria machucar você… Eu não queria… Eu não estava…
Eles haviam feito o que prometeram, mas não foi Amy quem foi tirada de mim e sim a pessoa que mais sofrera em minhas mãos ao longo dos anos. Foi uma ironia cruel e sádica que ela finalmente tenha voltado ao meu mundo e estivesse sofrendo novamente por isso.
Eu apenas a abracei, incapaz de conceber a ideia de ter terminado tudo ali. Em um rompante de loucura e, então… ela estava morta. E talvez, por causa do feitiço que eu havia feito anos atrás que prendia a vida de Bonnie à de Elena, tinha perdido uma das pessoas mais importantes da minha existência.
Apenas acolhi seu corpo pequeno contra o meu uma última vez e afundei o rosto em seus cabelos, apenas tentando não pensar nas consequências daquilo: Eve me odiaria para sempre, Amy talvez nunca mais conseguisse olhar para mim novamente e eu… sucumbiria àquela loucura lentamente, torcendo um dia após o outro para que não me descontrolar perto de uma das minhas filhas daquela maneira.
E agora, sem Bonnie, tudo parecia ter perdido o sentido, eu não conseguiria lidar com aquilo…
A garota em meus braços arfou desesperada, agarrando-se a mim em busca de algum tipo de apoio. Ouvi quando suas vértebras estalaram e voltaram para o lugar de uma maneira nauseante.
E eu? Fiquei olhando para ela como o idiota embasbacado que era.
— Kai..? — disse erguendo os olhos verde oliva para mim — O que houve? O que..?
E então, as lembranças de minutos atrás a assaltaram e Bonnie me empurrou bruscamente, deslizando para o mais longe possível de mim no piso de madeira.
— Você me atacou — acusou, assumindo uma posição de ataque meio agachada e com as presas a mostra — Tentou me matar! E o que eram aquelas coisas com você?!
Ainda sentado no chão meio embasbacado, fiquei olhando para aquela criatura belíssima de meio metro e furiosa. Eu estava tão feliz de vê-la, apenas sendo a Bonnie, que soltei um riso histérico e emocionado. E devo admitir que eu estava agindo como um lunático; rindo e chorando ao mesmo tempo.
A bruxa juntou as sobrancelhas arqueadas.
— O que deu em você?
— Eu matei você — falei ainda rindo com um louco — E você voltou.
— Está reclamando porque eu me curei de um pescoço quebrado? — ela estava mais confusa que irritada.
Sacudi a mão livre no ar e com a outra sequei as lágrimas. Bem, agora sabemos de quem a Amy havia herdado os dutos lacrimais abundantes.
— Não, claro que não — disse eu — Eu estou muitíssimo feliz que você tenha voltado.
Ela franziu o cenho.
— Espera… Achou que eu não voltaria?
Sacudi a cabeça em afirmativa.
— E está chorando por que está feliz?
Assenti novamente.
— E por que raios você me atacou, Malachai?
— Eu… não estava vendo você — sussurrei, agora mirando o chão — Pensei que eram eles.
— Eles? — ela perguntou e então parou por um segundo, se lembrando de algo — Quando o mantive preso embaixo daquela tumba, lembro de ter ouvido você falando sozinho e pode soar como loucura, mas juro por Deus que alguém respondeu. Mas…
— … não havia ninguém lá — conclui a frase.
Bonnie apenas assentiu, olhando para mim preocupada. Seu corpo relaxou, ela sentou-se com as pernas de lado e mirou meu rosto.
— O que está havendo, Kai? — ela perguntou.
Encostei a cabeça na parede e fechei os olhos por alguns segundos, apenas deixando aquela sensação de desespero e medo ir embora. Deixei meus ouvidos mais aguçados e constatei que as meninas ainda brincavam no quarto e que a TV de Amy estava ligada no último volume. As duas estavam jogando vídeo game.
Elas não haviam escutado nossa discussão. Sorri minimamente.
— Eu estou ficando louco, Bonnie — disse simplesmente.
— Mas você sempre foi…
— Não — cortei, ainda de olhos fechados — Não estou sendo excêntrico ou esquisito. Eu realmente estou enlouquecendo.
Abri os olhos lentamente, vendo a bruxa sentada diante de mim no piso de madeira escura. Seu semblante estava confuso.
— Eu vi aquelas coisas — falou — Você não está ficando louco.
Dei de ombros.
— Elas estão na minha cabeça o tempo todo. E sempre que alguém tenta interferir, elas afastam essa pessoa de uma forma ou de outra.
Bonnie apenas ficou em silêncio, olhando para mim daquela maneira silenciosa.
— Quem era ela? — perguntou.
— Ela quem?
— A garota que você perdeu.
Dei um sorriso triste.
— É tão óbvio assim?
— Você é um livro aberto. Mais até do que eu, Kai.
A bruxa continuou me olhando insistentemente. Suspirei.
— O nome dela era Kate. Trabalhava em um hospital como enfermeira — falei com a voz baixa — Eu a conheci em uma das noites em que a Amy havia tido mais uma de suas paradas respiratórias. Ela era apenas um bebê e eu era um pai de primeira viagem com uma filha meia vampira e bruxa com uma doença desconhecida. Então, no desespero, recorri à medicina tradicional — fiquei em silêncio por alguns segundos, esperando que aquilo fosse o suficiente para Bonnie. Mas ela me encarava insistentemente com os olhos verdes grandes e brilhantes. Hesitante, prossegui - Kate me ajudou muito com os cuidados que eu deveria ter com Amy no início, sem saber o que eu e ela éramos, claro. Porém, as coisas evoluíram para algo… íntimo — as sobrancelhas de Bonnie se franziram, mas ela tentou aparentar normalidade — Quando percebi, eu estava namorando e cuidando de um bebê — sorri e sacudi a cabeça lentamente — Estava tudo indo bem, estávamos juntos a alguns meses. E pensei que finalmente havia encontrado uma mulher que conseguiu me fazer esquecer a maldição tentadora que era Bonnie Bennett na minha vida. Porém, teve essa noite em que estávamos dormindo na minha cama e eu tive um desses pesadelos com aquelas… — estremeci —...coisas. Acho que a Kate tentou me acordar ou algo do tipo, pois quando dei por mim eu estava no chão, sobre ela, a pouco centímetros de rasgar a garganta dela e… porra — coloquei as mãos sobre a cabeça, sacudindo-a lentamente —... eu quebrei o braço dela com tanta força que quase o arranquei fora. Quando entendi o que estava acontecendo, apaguei a memória dela e a curei com meu sangue, mas eu nunca mais conseguiria olhar para ela de novo sem lembrar o que havia feito, então, a fiz se esquecer de mim e mudei de cidade com Amélia e Sol. Depois disso, nunca mais a vi.
Bonnie não disse nada, apenas abaixou os olhos para o piso, ponderando.
— Isso é… por causa da pedra, não? — disse lentamente — O irmão de Cecile, David, também havia sido ressuscitado por aquela coisa e também estava perdendo a cabeça aos poucos.
Franzi o cenho.
— Espera… a Cecile Courtaud tinha outro irmão?
— Irmão mais velho. Do primeiro casamento de Apollon. Uma longa história — ela sacudiu a mão no ar vagamente e olhou para mim de maneira séria — A questão é que você não foi o único a passar por isso. Ela me disse que Apollon fazia experiências com os lobos. Os matava e trazia de volta com a pedra. E todos enlouqueciam, porém, apenas alguns conseguiam passar pela experiência e ficar bem. Pelo menos, a maioria dos Courtaud, sim.
Como eu não estava sabendo de todas aquelas informações? Bonnie era muito boa em manter segredos.
— Você desenha, não? — perguntou subitamente — Claro que desenha — respondeu para si mesma, revirando os olhos.
— Sim — assenti, confuso — O que isso tem a ver com a situação?
— Quando Cecile me levou para conhecer David, ele estava preso em uma sala, num porão de uma das construções do condomínio — explicou, estremecendo com a lembrança — Ele era mantido em cárcere e algemado para sua própria segurança e a dos demais. O fato é que ele também desenhava, só que nas paredes ou em qualquer superfície, seja com materiais próprios e, pelo que deu para perceber, também com as unhas e… — ela engoliu em seco — sangue. O sangue dele.
Continuei escutando seu relato, sentindo arrepios correrem pela minha pele.
— Mas esse não era o problema — Bonnie prosseguiu — O perturbador eram os desenhos que ele havia feito. Atrocidades sanguinárias de todos os tipos que não pareciam se relacionar, exceto, pelo fato de que elas mostravam cenas de morte e extrema violência. E isso me levou a pensar… Kai, você já desenhou coisas assim?
Engoli em seco.
Ergui um dedo no ar e fiquei de pé em um átimo de segundo, atravessando a sala e peguei algo em meu escritório. Tudo isso levou apenas alguns segundos e quando retornei a sala de jantar, Bonnie estava novamente sentada em uma das cadeiras.
Sentei-me de frente para ela e estendi o caderno simples de capa preta e surrado para ela. A bruxa o mirou com curiosidade e o pegou de minhas mãos. Ela o estendeu diante de si e abriu, folheando as páginas rabiscadas com carvão e tinta vermelha.
Sua expressão serena mudou drasticamente para horror em poucos segundos conforme via cada um dos desenhos. E então, algo foi demais para ela e Bonnie fechou o livro bruscamente.
— Você… — ela engoliu em seco, parecendo enjoada —... estava consciente quando desenhou isso?
Sacudi a cabeça em negativa.
— É como estar em um transe e quando eu volto, essa coisa… — apontei com o indicador para o caderno —... está cheia de uma dúzia de novos desenhos. Simplesmente, não dá pra controlar.
Seus lábios se crisparam de preocupação.
— A Amy… tem algum tipo de sintoma como o seu?
— Não — disse eu — Apenas alguns pesadelos, mas nada tão preocupante. Ela sempre pede para dormir comigo quando sonha com essas coisas ruins. Eu não deixo — estremeci novamente apenas em imaginar — pelo que aconteceu com a Kate.
Bonnie assentiu com os olhos arregalados de ansiedade.
— Você me atacou, Kai — começou lentamente — Acha que a Amy está segura com você?
Aquela era a pergunta que me fiz por anos. E sempre evitei a resposta durante todos eles.
Mordi o lábio inferior, hesitante.
— Eu… sinceramente, não sei, Bonnie. Mas sei que nunca faria nada de mal conscientemente à minha filha. Nunca — falei, determinado — E se, um dia, desconfiar que sou uma ameaça para ela, eu mesmo enfio uma estaca no meu peito. Isso é uma promessa.
Bonnie não pareceu muito segura de minha afirmação.
— Eu sei que você preza pela segurança de Amy acima de tudo ou não estaria com ela até hoje — disse, rígida — Mas eu preciso que você me dê uma garantia de que não vai perder o controle como fez comigo. Preciso ter certeza de que você realmente está disposto a tudo para proteger a nossa filha de você.
Respirei fundo, absorvendo suas palavras.
— Toda vez que eu sinto que estou fugindo da realidade — expliquei — Eu saio de perto dela e me tranco no meu quarto. O modifiquei para ter travas especiais que me soltam apenas se eu estiver lúcido. Foi um feitiço que elaborei antes mesmo das coisas ficarem como estão, pois eu sabia que não haveria cura para o que eu tenho. O que aconteceu essa noite, foi um descuido. Eu não estava prestando atenção aos gatilhos que normalmente desencadeiam isso, justamente, porque você estava por perto.
— Espera — ela franziu as sobrancelhas — Está dizendo que é culpa minha?
— Não — sacudi a cabeça — Estou dizendo que sua presença me desestabiliza. Eu esqueço de tudo quando estou com você.
Sabe o elefante na sala? Pois é, ele voltou. Bonnie ficou muda e desconcertada com minha declaração.
Depois de um segundo, eu percebi a idiotice do que havia dito.
— Ok. Isso foi estranho e piegas.
— Um pouco — Bonnie, remexeu-se na cadeira, um tanto vermelha.
Tentei dizer algo estúpido ou engraçado para amenizar a situação, mas quando abri a boca, ouvi Eve exclamar furiosa:
— Papai, a Amy está roubando!
Eu e Bonnie olhamos na direção da menina furiosa que apontava para sua irmã que estava de braços cruzados e um ar de soberba em sua expressão.
— Só porque sou boa no que faço, não quer dizer que eu esteja roubando — declarou, com uma sobrancelha arqueada como sua mãe.
Bonnie apenas riu e sacudiu a cabeça, aparentemente, aliviada por fugir do assunto tenebroso do qual estávamos falando antes.
— Meninas — ela disse — Não briguem.
— Eu não estou brigando — disse Amy na defensiva — Essa bobona que não sabe perder.
— Bobona é você! — Eve exclamou, furiosa — Como você pode ser tão boa em um jogo tão difícil? Isso não é possível.
— Deve ser porque eu não saio de casa e não tenho amigos — Amy disse apenas em tom acusatório — Mas você não sabe o que é isso, já que não está a beira da morte como eu.
E o terceiro elefante do dia marcou presença. Eve se acalmou quase que imediatamente e a culpa atravessou seu rostinho.
— Amy — Eve se aproximou dela, segurando a manga de sua blusa com um beicinho nos lábios rosados — Me desculpa… Eu sou muito boba e idiota.
Amy apenas revirou os olhos para sua irmã.
— Para de ficar me paparicando porque estou doente — resmungou, contendo um sorriso — Você fica parecendo o nosso pai.
Eve fez uma careta.
— Eca. Eu não pareço com ele.
Minhas sobrancelhas se ergueram com aquela ousadia.
— Sinto muito por isso — Amy sorriu, já esquecida de sua raiva e acariciou a mão de sua gêmea — Mas vocês são idênticos.
Eve colocou os olhos azuis sobre mim e coloquei os meus sobre ela.
— Não — dissemos em coro, sacudindo a cabeça em negativa. Isso não ajudou em nada a nossa dificuldade de aceitação um do outro.
— Ela é malvada — resmunguei.
— Você também é — Bonnie cantarolou diante de mim — Do tipo que chuta cachorrinhos e sai feliz da vida.
Franzi o cenho, ofendido.
— Eu nunca chutei cachorrinhos. Eu gosto de cães — e olhei para Eve, alarmado — Você já chutou algum?
Ela cruzou os braços, emburrada.
— Você acha que eu sou algum tipo de psicopata, pai?
Cocei a cabeça e olhei para Bonnie, encurralado. Como eu responderia aquilo sem traumatizar a menina?
— Não, meu amor — Bonnie se prontificou — Você não é uma psicopata. Eu saberia se fosse e a trancaria do lado de fora de casa com Raizo.
Isso arrancou uma risada da menina.
— Ele gosta de você, mamãe.
— Claro que gosta — ela revirou os olhos, magoada — Aquele pulguento.
— Espera… — cerrei os olhos — O cachorro não gosta de você? — e ri com sua expressão irritada — Sabe o que isso diz sobre sua personalidade, não?
— Eu sou mais legal que você, idiota — ela resmungou, cruzando os braços sobre o peito fortemente.
— Os cães gostam de mim — sorri abertamente.
Bonnie me olhou de cima a baixo desconfiada.
— Mentira.
— É verdade.
— Como isso é possível? — ela estava mortalmente ofendida.
— Você não gosta de cães — falei simplesmente — Eles sentem esse tipo de coisa.
— Como assim? Eu amo cães! — exclamou, um pouco fora de si — Diga para ele, Eve.
A menina apenas sorriu e negou com a cabeça.
— Ela não gosta, não.
Eu e as gêmeas rimos em coro, deixando uma Bonnie muito irritada.
— Tá — deu de ombros — E daí que não gosto de cães? Eles soltam pêlo em tudo, destroem seus melhores sapatos e mordem você quando tenta acariciá‐los.
Ergui uma sobrancelha.
— Você está criando um cão ou uma quimera?
— Cala a boca, Kai.
— Quantos anos vocês têm? — Amy perguntou subitamente.
Eu e sua mãe ficamos confusos com aquela pergunta.
— Vinte e nove — respondeu Bonnie
— Quarenta e oito — disse eu.
Eve olhou para mim longamente sem conseguir ligar a aparência com minha idade. Eu teria que explicar essa parte para ela mais tarde.
Amy prosseguiu.
— Como eu e a Eve nos acertamos tão rápido e vocês continuam brigando? — ela ergueu as sobrancelhas — Nós que somos as crianças aqui.
Abri a boca sem saber o que dizer. Bonnie  nem mesmo tentou.
Amy segurou a mão de Eve e a levou de volta para o quarto.
— Caramba — Bonnie sorriu, desconcertada — Ela é boa em dar broncas.
— Tem que ver quando faço algo errado — murmurei — Ela não sossega até que eu admita o erro.
— Droga — ela riu — Eu cuidei de uma mini versão sua e você de uma minha.
Tive que concordar.
— A ironia disso me faz chorar todas as noites.
— Por acaso, a Amy tem mania de estalar os dedos e contar os passos? — perguntou, entusiasmada.
— Como sabe disso? — eu ri — Aquela menina parece uma calculadora humana. Tudo tem que ser extremamente exato!
— Sério? Eu faço isso também!
— Claro, isso tinha que vir de algum lugar — sacudi a cabeça — A Eve por acaso, separa os marshmallows do cereal?
— Nossa, sim! — ela anuiu com a cabeça, rindo — Você faz isso?
— Eu odeio, marshmallow — fiz cara de nojo — Como as pessoas comem aquilo? É molenga e esponjoso, parece que estou comendo uma nuvem.
— Sabe que isso não faz sentido, não é? — ela semicerrou os olhos verdes.
— Você não tem muitos argumentos contra mim — lancei — Seu cachorro não gosta de você.
Isso a fez revirar os olhos e sorrir de maneira contida.
— Eu queria poder voltar no tempo e não ter feito tudo o que fiz no passado — soltei sem pensar — Apenas para poder esperar por você.
A bruxa mirou meus olhos.
— Você seria um cara de quarenta e oito anos muito charmoso.
— Eu teria sido, quem sabe, seu professor na faculdade e faria minha jovem e inocente aluna cair de amores por mim — brinquei, embora tivesse um fundo de verdade naquilo — e ignoraria todas as reprovações dos meus colegas por arriscar minha carreira acadêmica por uma garota que acabou de sair do ensino médio.
Ela sorriu abertamente.
— Conhecendo minha versão adolescente como conheço, com toda a certeza eu teria caído no seu papo e me renderia completamente.
— Nós teríamos nos casado.
— E teríamos nossas meninas.
— E não haveria dor, rejeição ou sofrimento.
— Sim — ela assentiu com os olhos marejados — Acho que eu teria te amado em outra vida, Kai.
Sorri tristemente.
— Eu te amaria em todas elas, Bonnie.
Ficamos nos olhando longamente, ansiando por algo que nunca havia ocorrido. Uma de várias outras possibilidades que nunca vieram a acontecer, mas que teriam me guiado da maneira mais correta para ela. Porém, eu havia escolhido um caminho de dor e sofrimento. E o tinha pavimentado de maneira sólida. De uma forma que nem mesmo eu conseguiria desfazer.
Minha sina seria ansiar por uma mulher que estava fora de meu alcance para sempre e por mais que eu tentasse me aproximar, teria que desistir em algum momento e deixá-la seguir em frente com sua vida.
E cogitar isso, estava acabando comigo.
Bonnie apenas suspirou e enxugou uma lágrima que correu por sua bochecha.
— Está tarde — disse apenas — A Eve tem aula amanhã cedo.
Assenti, vendo a bruxa ficar de pé e fiz o mesmo ainda perdido naqueles pensamentos esclarecedores e dolorosos.
— Sim — concordei — A Amy também precisa descansar.
Bonnie concordou. Entretanto, não se moveu do lugar, atravessando-me com aqueles olhos verdes e brilhantes.
— Eu tenho que ir — sussurrou.
— Você tem — concordei novamente.
— Eu preciso.
— Eu sei — suspirei, sendo o primeiro a cortar contato visual.
Ela entendeu o recado e afastou-se, indo chamar Eve no quarto de Amy.
Ouvi um séquito de reclamações das meninas e, até mesmo Soledad, que quase nunca reclamava de nada, protestou, mas Bonnie estava resoluta em sua decisão. Quando saiu do quarto, segurava a mão de Eve e Amy estava agarrada em sua cintura com cara de quem ia chorar a qualquer segundo. As despedidas pareciam cada vez mais dolorosas para ela.
Bonnie se despediu de Soledad com um abraço e depois de agasalhar Amy corretamente, descemos para acompanhá-las até a saída. Ficamos parados perto dos portões da fábrica, enquanto as meninas se despediram com um abraço apertado. Confesso que para um cara com poucos sentimentos, nesses momentos até eu tinha que desviar o olhar ou corria o risco de ficar extremamente molenga ao ver as duas meninas tristes com a breve separação.
Amy abraçou Bonnie uma última vez, antes de agarrar minha perna e fazer força para conter as lágrimas que queriam sair.
Eve, por sua vez, ficou alternando seu olhar entre mim e sua irmã. Os olhos dela também estavam vermelhos. E, então, subitamente, ela correu na minha direção e abraçou minha cintura.
Eu não soube como reagir, afinal, ela não era como sua irmã. Tentei agir como um pai normal agiria: circulei seus ombros com meu braço e acariciei seus cabelos.
— Se continuar assim, vou ter que dar a parte da herança da sua irmã para você — provoquei, alisando seus cabelos escuros com meus dedos.
— Eu ainda quero meu vídeo game — ela resmungou com a voz embargada.
— Tudo bem, sua mercenáriazinha — eu ri, a abraçando contra mim.
- Certo, Eve — Bonnie disse — Chega de extorquir o seu pai — e levantou os olhos para mim com malícia — Por hoje.
Eve assentiu, soltando os braços e segurou a mão estendida de sua mãe.
Bonnie não disse nada, apenas se afastou sem dizer uma única palavra. Vi que seu carro sumiu noite adentro com Amy em meus braços.
— Papai — ela disse.
— Sim, princesa — mirei seus olhos azuis.
— Tem baba escorrendo pelo seu queixo — riu.
Revirei os olhos com sua piadinha.
— Depois eu que sou criança — murmurei, atravessando o jardim e subindo as escadas.
— A mamãe é mais sensata que você — disse ela com um calor na voz.
— Ela é — sorri tristemente, seguindo pelo corredor — Ela sempre foi.

LAÇOS MORTAIS | Bonkai |Where stories live. Discover now