40. Quase Amigos

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Fui carregada por um extenso corredor, largo como o Atlântico com cortinas cor de rosa, com Hana dando suporte de forma muito paciente. Tudo à minha volta estava se retorcendo e distorcendo, como se as paredes e o piso estivessem tentando se tocar de alguma forma muito estranha.
- Chegamos- ouvi-a dizer aos nos aproximarmos das portas pesadas que bloquearam a entrada.
Ela girou a maçaneta com a mão livre e entrou, comigo ainda em seu encalço. Pude ouvir os sons dos passos de Cecile e o médico nos seguindo de perto, como duas sombras.
Ao adentrarmos tive que fechar os olhos por um segundo. A luz que irradiava do teto era extremamente clara, as paredes pintadas de um branco tão imaculado quanto o possível. Girei o olhar baço em volta e vi por entre minha vertigem, muitas camas altas e estreitas, com grades nas laterais. Aparelhos eletrônicos com sons de bipe estavam ao lado de cada uma delas, juntamente com cortinas verde-água que separavam os leitos.
Eu estava em pequeno hospital completo. Quem diria que eu acabaria encontrando o tal lugar mesmo? Claro, que com machucados nada superficiais em minha busca.
Ao mencionar isso, meus joelhos cederam mais um pouco e senti meu estômago se remexer furiosamente.
- Ela está verde- ouvi Cecile comentar.
Sua voz parecia estar a quilômetros de mim.
- Não está ajudando, Ceci- disse Hana, com enfado - Venha, sente-se aqui- murmurou, agora gentil.
No momento em que sentei no colchão de plástico, senti meu centro de gravidade migrar para a esquerda.
- Papai!- Hana chamou, alarmada, porém controlada.
- Não, não, não- o médico resmungou, ouvi seus passos se aproximando e notei que havia fechado os olhos por um segundo. Ou teria sido mais que isso?- Não desmaie agora, você pode ter uma concussão. Ei, ei...
Senti alguns tapinhas em meu rosto me impedindo de fechar os olhos como queria.
Os abri, sonolenta e exausta. Senti algo quente descendo por minha bochecha.
- Está perdendo sangue, precisamos suturar isso- o ouvi dizer, mais para si mesmo do que para mim- Hana, aplique a anestesia local enquanto eu preparo a agulha.
A garota se apressou em fazê-lo. Eu estava tão grogue que mal senti a agulha perfurando minha pele. Mas a falta da dor eu senti, no entanto a tontura e o enjôo persistiram.
- Agora vamos fechar esse corte- ouvi o médico dizer para mim, abri os olhos por um segundo, vendo-o segurar uma agulha quase translúcida de tão fina entre os dedos. A linha negra balançando com a brisa do ar condicionado- Fique quietinha.
Sacudi a cabeça.
- Não...
- O quê?- ele pareceu descrente- Você não pode ficar sangrando aqui. Vai contra o juramento que fiz na faculdade antes de ser expulso.
Um médico sem licença. Que ótimo. Me senti muito mais segura com aquilo.
- Eu preciso voltar logo. Kai... Ele...-tentei dizer.
- Sra. Parker, ele vai ficar aborrecido de qualquer maneira, mas ficará muito mais se eu deixá-la sangrando até perder os sentidos no meu consultório.
- Não... Me chame assim... - falei, com uma irritação débil.
O médico nao disse nada quanto à isso.
- Olha, veja por esse ângulo- ele pigarreou- Se eu não cuidar da senhora, pode ser que seu... '' namorado'' se irrite e não tem nada pior do que um vampiro ressentido com um velho como eu.
Pousei meus olhos nos seus escondidos atrás de lentes garrafais pesadas. Ainda grogue, me forcei a olhar para sua filha, Hana. Eu causaria muitos problemas à eles se não deixasse o médico fazer seu trabalho.
Soltei um suspiro pesado.
-Tudo bem.
Então, ele começou.
Mal senti o contato da agulha em minha pele. Apenas um leve repuxar lento e cuidadoso.
Enquanto isso Dr. Wong tentou me distrair com qualquer tipo de conversa para que eu não embarcarsse para a terra dos sonhos e entrasse em coma.
- Cecile não deveria tê-la feito andar tanto- desaprovou.
Ouvi um som de muxoxo vindo do outro lado da sala.
- Eu ainda estou aqui, velho.
- Ainda bem, não gostaria de falar mal de você pelas costas, Cecile Courtaud- alfinetou.
- Não me chame assim- ela resmungou- É Deboir, não Courtaud.
- Mas esse é seu nome, não é? O que seu pai lhe deu.
Hana, na outra ponta da sala, arrumando alguns utensílios, suspirou.
- Papai, não comece -pediu- Vocês não conseguem passar uma semana inteira sem brigar?
Foquei o rosto de Cecile, seus olhos amarelos brilhando no mais puro ódio.
- Quando você morrer - enfatizou- Eu vou dançar sobre a sua cova, velho.
- Espero que não ao som de 'I will survive'- provocou- Seria clichê até para você, Courtaud.
Ela deu um sorrisinho cínico e derrubou uma bandeja de bisturis antes de sair da sala.
- Depois diz que não é parecida com o pai- murmurou para mim, sem se afetar- Os dois têm o mesmo temperamento explosivo. Mas, é uma boa menina quando quer.
Hana se aproximou com os lábios crispados de reprovação.
- Não deveria provocá-la desse modo. Ela se esforça tanto, papai.
Ele continuou a suturar o corte em minha testa.
- Cecile tem muita raiva dentro de si. O mundo não é gentil com ninguém. Ela precisa aprender a controlar esse ódio e transformá-lo em força.
- Ela já é muito forte- defendeu Hana.
- Não o suficiente- ele retoquiu.
A garota desistiu de dissuadi-lo e foi recolher a bagunça da filha de Apollon.
- Ela está sofrendo- murmurei, com a voz rouca.
- Quem?- ele perguntou, ainda concentrado no trabalho.
- Cecile.
Ele suspirou gravemente.
- Ela se sente rejeitada. Por todos. Então, se afasta de todos.
Esse não me parecia bem o caso. Pelo contrário, ela parecia estar cercada de pessoas que a amavam. Mas isso me fez lembrar do quão distante Apollon foi ao apresentar sua filha para nós pela primeira vez. Ele não parecia sentir o mesmo tipo de amor em relação à ela diante de seus outros filhos.
- O senhor parece gostar muito dela-afitmei, com um fraco sorriso.
- Ela é a única amiga de minha filha. Então, pode-se dizer que tenho um certo apreço pela cria de Apollon.
Depois de alguns segundos, o homem finalizou o trabalho e estava quase se afastando quando segurei sua mão.
- Doutor...- chamei.
- Sim?- ele se voltou, no exato, momento em que sua filha saia da sala carregando algunz utensílios hospitalares.
- Sabe porque estou aqui- falei, intensamente.
Seus olhos escuros pareceram irradiar uma inteligencia inquestionável por trás do óculos enormes.
- Sim- disse simplesmente.
Esperei que ele dissesse algo, que fosse direto ao ponto do assunto sobre o qual eu havia vindo saber, mas o homem nao o fez. Ele continuou me fitando, como se esperasse algo de mim.
- Então...?- ergui as sobrancelhas sugestivamente.
- Sim?
Aquela situação estava me levando à um estado de estresse anormal, e o fato de aquele médico estar adiando uma resposta me fez soar muito mais grosseira do que eu pretendia.
- Eu estou grávida ou não?
Com uma lentidão irritante, ele voltou a se sentar no banco ao lado de minha maca. O vi juntar as mãos sobre o colo, parecendo ponderar sobre algo.
Depois do que me pareceu uma eternidade, ele finalmente abriu a boca.
- Bem, seus níveis de hormônios estão anormais, mas nada que indique algo tão trivial quanto uma gravidez.
Franzi o cenho sem compreender o que ele queria dizer com aquilo.
- Eu estou grávida ou não?- repeti, ansiosa.
Ele me fitou dos pés à cabeça, como se já soubesse toda a resposta para o que estava acontecendo dentro de mim. Ou não. Sua expressão era tão sombria quanto seu humor.
- Certamente, notou que seus sintomas não são os usuais de uma gestante, não?- murmurou, mais para si mesmo do que para mim- Talvez, porque o suposto pai seja um vampiro. Mas não um vampiro comum, não é?- seus olhos se afiaram de forma perspicaz- Porém, nem eu mesmo sei o que ele é. Esse é um caso que faz a própria matemática parecer mas fácil.
Meu Deus... Ele estava divagando mesmo. E ainda assim, tinha minha total atenção.
Seus olhos escuros e enormes pelas lentes se focaram nos meus mais uma vez.
- Sabe, durante todos esses anos convivendo com lobisomens, eu pude estudar um pouco mais de sua biologia. A regeneração celular e seu desenvolvimento é incrível. Mas nunca tive a oportunidade de estudar a biológia de vampiros. Tudo o que sei se dá pelo o que ouço os lobos comentarem- ele se inclinou na minha direção de forma conspiratória- E cá entre nós, acho que a maioria das coisas é folclore. Os lobisomens tem esse forte instinto de autopreservação quando se trata da espécie; o que é diferente é errado e ameaçador. Na verdade, acho que eles perdem chances de entrar em contato com outras espécies de criaturas mais incríveis. Mas, quem sou eu para contestá-los? Afinal, sou apenas um médico.
Podia ser o efeito dos remédios, mas jurei que ele me encarou de um modo muito estranho quando disse "criaturas incríveis".
- E onde me encaixo nisso tudo?-perguntei.
Não acreditei nem por um segundo que aquele papo-furado fosse sem propósito.
O homem manteve-se tão sério e sereno como antes.
- Seus exames revelaram coisas bem interessantes, Srta. Bennett.
Fiquei feliz que ele tivesse usado meu sobrenome e não o de Kai. Mas isso foi apenas um leve fulgor perto do problema que eu estava prestes a enfrentar.
- Que tipo de coisa? - questionei.
- Coisas que humanos não deveriam ter- disse simplesmente.
Franzi as sobrancelhas por um segundo. Um tanto sem palavras para perguntar algo específico.
- Bom, resumidamente- ele murmurou de forma simples- você ainda é você. Só que com algumas curiosas melhorias. E defeitos, por assim dizer.
- Eu... Eu não estou entendendo, doutor- por que minha voz estava ofegante?- O que há de errado comigo?
Seus dedos enrugados se entrelaçaram fortemente uns nos outros.
- Você tem algum caso de anêmia crônica em sua família?- perguntou subitamente.
- O quê? Não... Não que eu saiba.
- Então, devia dar uma olhada nisso. Não é normal. Não nesse nível.
Aquilo estava me deixando extremamente confusa.
- A propósito... Parabéns- ele disse.
E aquela simples palavra me fez em palidecer mais que um morto. Será que eu estava realmente esperando um bebê- ou seja lá o que fosse aquela coisa que cresceria dentro de mim?
- Pelo quê...?- minha boca estava seca.
- Pela regeneração incrível- falou com entusiasmo- Não chega nem perto de um lobisomem, e passa bem longe de um vampiro, mas para uma simples bruxa, você está indo mais do que bem.
- O... O quê...?- pisquei.
- E voce tem alguma alergia grave à raios ultravioletas?
Eu não estava conseguindo acompanhar sua linha de raciocínio. Cada pergunta chegava até mim como tiros nos meus tímpanos, deixando-me incapaz de pensar ou reagir com clareza. Talvez, o fato de aquele velho ser médico se dava pelo fato de conseguir dar notícias ruins de forma que deixasse seus pacientes torpes demais para processá-las com clareza.
- Não...-comecei a dizer, mas parei por um segundo.
Olhei para os meus braços nus diante de mim. A pele estava perfeitamente normal, como deveria ser. Mas, à uma hora atrás ela não estava tão perfeita assim. O calor excruciante ainda reinava em minhas memórias.
- Foi o que pensei- escutei Dr. Wong dizer.
Levantei os olhos para ele.
- O que está acontecendo comigo?- será que ele podia ouvir o desespero em minha voz?
Ele suspirou pesadamente, deixando seus olhos assumirem aquele ar sombrio de novo.
- Você está mudando- murmurou de forma simples.
Monha respiração estava ofegante.
- Mudando para o quê?
- É o que eu gostaria de saber- disse, sua expressão insondável.
Abri a boca prestes à perguntar mais alguma coisa, quando fomos imterropindos por alguem que escancarou a porta.
Era Hana. Mas não com sua habitual calma e paciência.
As bochechas pálidas estavam rubras e os cabelos louros levemente desgraciados.
- Papai! Ela está em trabalho de parto!
Dr. Wong revirou os olhos.
- Eu já disse à Srta. Mathews que ela não está em trabalho de parto é só uma...
Um grito de dor ecoou pela casa toda. Parecia ser uma mulher.
- Ela está em trabalho de parto! - disse o médico pasmo.
Ele correu até sua valise do modo mais rápido que um homem de oitenta anos podia fazer, e se apressou para fora da sala com sua filha em seu encalço.
E eu, pelo visto, havia sido esquecida ali mesmo.
Tentei me levantar, mas tudo começou a girar de repente como um caleidoscópio. Decidi ficar mais um pouco.
Suspirei em parte por alívio, em parte por medo.
Eu não estava grávida, e isso era um grande motivo para se ficar feliz. Ainda mais quando o pai podia ser Kai Parker, um cara não muito fã de crianças.
Sempre quis filhos, mas não desse jeito. Não dele.
Mas minha felicidade era uma maratonista de muito sucesso. Pois se esquivava de mim com muita facilidade. Saber que eu estava diferente, me tornando algo mais foi assustador. Tentei, repassar todos os fatores que indicavam minha súbita mudança.
Quando Apollon surgiu na casa dos pais de Kai e aquele vampiro tentou avançar para cima dele, eu consegui segurá-lo. E naquele momento ele estava usando uma tremenda força. E quando pensei que ele havia matado Sol e o empurrei contra a moldura de um quadro fazendo-o se rachar. E claro, o evento mais recente, quando dei um soco na porta, deixando o formato perfeito de meu punho, sem causar uma dor verdadeira.
E a fome...
A sede pelo sangue de Kai.
Eu estava me tornando uma...?
A porta do consultório sendo aberta me distraiu.
Vi Cecile entrar no lugar com toda sua naturalidade descarada.
- Como ela está? A garota em trabalho de parto?- perguntei, estranhamente curiosa com aqusla situação.
Talvez, eu só estivesse tentando me abstrair de meus próprios problemas.
- Sarah passou muitos dias ameaçando "explodir"- ela fez aspas no ar com os dedos- mas não acontecia nada. Não até agora.
- Espero que tudo corra bem- murmurei com um fraco sorriso.
- É- ela deu de ombros, remexendo em alguns objetos sobre uma mesa metálica perto de um leito- É o que todos esperam.
O modo como ela disse aquilo trazia um certo rancor.
De repente, seus olhos dourados se voltaram para mim.
- O que Apollon quer de você e o vampiro?
Direta.
- Você estava presente. Sabe muito bem o que ele pretende.
Ela bufou, indo se sentar sobre uma maca.
- Ele só nos deixa saber o suficiente. Nada à mais ou menos. Ele não disse mais nada à vocês, algo importante?
- Se ele disse, provavelmente, não foi para mim- falei.
- O vampiro... Entendo.
- Kai.
- O quê?
- O nome dele é Kai.
Porque aquilo me pareceu tão importante, eu nem faço ideia.
- Kai. Que seja. Ele disse algo para você, algo relacionado à aquela pedra?
- Por que você acha que ele me contaria algo? - desafiei.
- Sei lá, talvez porque você durma com ele?
Fechei a cara.
- Eu sei tanto quanto você. E mesmo que soubesse não contaria, porque eu não te conheço. Até onde sei, você é a filha do homem que tentou me matar.
Cecile abriu um sorriso quase simpático. Ela ficava muito diferente fazendo aquilo. Quase humana.
- Entendo. Eu também não confio em você. Mas confio muito menos na minha família, se é que pode se chamar aquilo de família.
Arqueei uma sobrancelha.
- O que você pretende com isso? Por acaso isso é algum plano do seu pai para testar minha lealdade? Pois saiba que eu não sou leal à ninguém que não sejam meus amigos e família.
- Somos bem parecidas nesse quesito- ela assentiu compreensiva- Nesse caso, se você não sabe o que está acontecendo, então não fará mal algum abrir os seus olhos para o que está acontecendo de verdade. Para aquilo que Apollon não quer que vocês saibam.
Franzi o cenho.
- Por que faria isso?
- Por que todas as pessoas ajudam umas às outras?-questionou- Para receber algo em troca.
Ela se levantou e caminhou até a porta.
- E o que você quer?- perguntei.
- Saberá à seu tempo- murmurou e saiu, fechando a porta atrás de si.
Fechei os olhos com força e encostei a caneca no travesseiro mais uma vez. No que eu havia me metido?

LAÇOS MORTAIS | Bonkai |Where stories live. Discover now