41. Pratos Limpos

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Todos os olhos estavam presos em mim enquanto caminhava na rua apinhada de lobisomens. Podia senti-los sobre mim, queimando, ardendo de ódio mal disfarçado. Para eles, eu era apenas uma intrusa. Pior ainda. Eu era apenas a bruxa vadia de um vampiro. As duas opções eram animadoras.
Apesar do ar altivo, estava atenta para qualquer insinuação de ataque da parte daqueles monstros. Eu não senti medo, pois sabia que aquela força que residia dentro de mim poderia me proteger. Não havia como aceitar aquela coisa de super força numa boa, mas desde que conversei com Dr. Wang, tentei assimilar aquilo de uma forma mais natural, apesar do meu lado bruxa odiar a ideia do que estava me tornando. Será que isso era reversível? Havia uma volta? Eu queria voltar a ser a Bonnie fraca de antes? Acima de tudo, eu queria voltar a ser usada de novo por todos?
Mas, isso cobraria um preço. Eu teria que tirar vidas para sobreviver. Afinal, não era isso que todos os vampiros faziam? Destruíam tudo à sua volta?
Mas eu não era uma vampira. Não ainda. Para falar a verdade, eu nem sabia exatamente o que estava me tornando. Algo como Kai? Ou algo completamente novo? Afinal, eu não morri, mas estava diferente do que era antes.
Essas indagações faziam minha cabeça doer. Acho que teria sido menos traumático estar grávida de um herege sociopata. Pensar nisso fez todo meu corpo tremer em resposta. Senti meus músculos internos contraírem por vontade própria, como que tentando expelir qualquer coisa que estivesse dentro de mim. Mas, não havia nada lá. Eu estava vazia. E sozinha. Como sempre.
Esse sempre seria meu fardo.
Sacudi a cabeça, afastando tudo de ruim. Eu precisava estar focada em minha missão. Encontrar Cecile.
Ela tinha algo importante a compartilhar comigo. Algo que Apollon estava escondendo de mim e Kai. Ou, pelo menos, foi o que ela disse naquele bilhete. Mas seria aquilo tudo uma armadilha? Uma forma de Apollon descobrir se éramos leais à ele? Cecile não parecia nutrir nenhum sentimento por seu pai. Então, eu podia colocá-la em uma zona neutra. Não confiava nela, mas confiava muito menos em sua família.
As informações embutidas na mensagem da garota foram muito úteis para que eu não me perdesse naquele enorme condomínio de casas exatamente iguais. As ruas, apesar de extremamente parecidas, tinham lá suas similaridades, assim como seus moradores. Ao contrário do que se podia imaginar de um lugar daqueles, as pessoas que conviviam nele não aparentava ser dali. Todos usavam o mesmo estilo de roupas de nômades; botas de caminhada fortes, jeans muito puídos e camisetas em estados similares. Era como se eles nunca tivessem se adaptado com a vida de luxo que seu líder lhes proporcionava. Só de olhar para eles, dava para sentir o ar primitivo de seus ancestrais no ar. A primeira imagem que me vinha à cabeça quando pensava nessas coisas era a de um cão selvagem preso em uma coleira. Era o que a expressão deles passava. Eles estavam bem, estavam seguros, mas não felizes. Essa realidade estava bem distante. E eu era a intrusa-vadia-de-um-vampiro que estava tornando suas vidas mais difíceis. Quase me senti culpada por isso. Quase.
Durante todo o trajeto, apesar de estar exposta, tomei o cuidado de não ser seguida. E para minha não tão surpresa assim, vi dois capangas de Apollon caminhando alguns metros atrás. Seus olhos em mim sem nem disfarçar um segundo.
Sabia quem eram eles, por seus ternos escuros e mal humor que exalava como uma aura.
Revirei os olhos. Que ótimo.
Apressei o passo, sabendo que eles me seguiriam rapidamente. Olhei por cima do ombro algumas vezes, me certificando de que ainda estavam lá. Sim, estavam.
Sorri secretamente.
Segui pelo mesmo trajeto que levava até a casa em que vi Manon e aquele homem enorme conversando. Teria sido um erro ir ali sozinha sem ninguém por perto, mas eu já era bem crescida para lidar com situações como essas.
Segui pela mesma calçada, apurando os ouvidos para os sons pesados de seus passos logo atrás de mim. Atravessei o gramado da casa, me perguntando se eles entrariam no lugar, mesmo sabendo o que Kai poderia fazer com eles se descobrisse. E não é que eles não tiveram medo?
Abri a porta, entrando rapidamente na construção abandonada e segui pelos cômodos, os ouvindo vir atrás de mim. Atravessei a sala e em seguida a sala de jantar e entrei pela cozinha, saindo pela porta dos fundos.
- Ei!- ouvi um deles gritar, ainda dentro da casa, enquanto eu caminhava pelo jardim dos fundos- Volta aqui!
Me deparei com uma cerca de madeira branca e recém pintada de uns três metros de altura. Havia uma árvore frondosa por trás dela.
Voltei pelo mesmo caminho, apenas até a metade do jardim, no mesmo instante em que os dois homens saíram pela porta. Aquela situação não me incomodou de forma alguma.
Com uma confiança desconhecida, corri com toda a força de minhas pernas- os músculos se retesando sem nenhuma dor ou esforço significativo.Ouvi os guarda costas gritando atrás de mim, mas isso só serviu de gatilho para querer me afastar o máximo possível. Quando estava quase me aproximado da cerca outra vez- faltando uns trinta centímetros- dei um salto com toda minha força. O impulso me fez pisar contra a parede de madeira e me impulsionar mais para cima, agarrando um galho da árvore. A escalei sem nenhuma dificuldade.
Sentada contra um dos galhos, olhei para baixo, excitada pelo exercício e surpresa com minhas próprias habilidades. A antiga Bonnie nunca teria conseguido fazer aquilo.
Os homens pararam logo abaixo de mim, bufando de raiva e tentando me alcançar, mas mesmo que fossem lobos com habilidades tão semelhantes às minhas, eles eram grandes e desajeitados demais para fazer aquilo.
Lancei um beijo em sua direção.
- Até mais tarde, garotos- pisquei, e saltei da árvore.
Ignorei o xingamento que veio em seguida. Eu estava feliz demais com o que eu podia fazer para ligar para aquilo. Parei no meio do jardim de alguém, me dando conta de que eu havia saltado de uma árvore de uns cinco metros de altura sem nem mesmo titubear. Isso foi assustador. E incrível.
Saí pela lateral de uma casa, ignorando uma mulher que se assustou ao me ver pisar em seu canteiro de flores. Segui pelo caminho já traçado, sabendo que não estaria mais sendo seguida.
O dia estava nublado, e mesmo que eu tivesse usado uma camada considerável de protetor solar, ainda assim, sentia o incomodo fervente que era o sol escondido sob as nuvens. Kai não estava brincando quando disse da incidência dos raios ultravioletas. Apressei minha caminhada, resmungando sobre o fato de não termos um carro para usar naquele lugar.
Depois de alguns minutos, a paisagem do lugar pareceu mudar, saindo da zona de casas bonitas e confortáveis para estruturas inacabadas e feias. Aquela com certeza, era uma zona em construção. As casas pareciam um pouco maiores que as demais e provariam ser bem mais elegantes e bonitas no futuro.
Caminhei até o fim da rua que terminava em um enorme muro cinzento de uns vinte metros. Minha liberdade estava atrás daquelas paredes, mas eu sabia que mesmo um salto em uma cerca de três metros não se equiparava a aquilo.
A casa ficava quase no sopé do muro, que criava uma gigante sombra sobre o lugar. Um péssimo espaço para se construir uma casa.
A estrutura era naquele estilo modernista e ousado, cheio de ângulos e linhas retas. Algo que deixaria o "feng chui" muito desequilibrado, aposto.
Segui pelo caminho de pedras na grama recém colocada, notando que mais de perto, a casa tinha lá suas falhas da recente construção. A pintura azul estava inacabada e haviam reparos aqui e ali. As janelas estavam com tapumes de madeira, impedindo a visão do interior.
Se eu estivesse sendo seguida, com certeza, teria entrado pela porta dos fundos, mas não havia necessidade daquilo, já que despistei os dois trogloditas.
Nao foi uma enorme surpresa que ao tentar entrar naquele lugar a porta estivesse trancada. Olhei para o elaborado sistema de segurança embutido na parede. Puxei um pedaço de papel do bolso da calça, o recado de Cecile. No verso havia uma combinação de números. A digitei no painel, vendo a porta se abrir automaticamente.
Com cuidado, entrei no espaço escuro. A pouca luz que vinha da porta me dizia que ali era a sala de estar, pois haviam alguns poucos móveis envolvidos em plástico recém saídos da loja.
Fechei a porta, esperando minha visão se ajustar ao escuro. Foi estranho perceber que minha visão se intensificar no escuro de uma forma complemente sobrenatural. Tudo estava ali, em seus mínimos detalhes, como se estivesse vendo com uma lente especial. Nada passava despercebido por meus olhos.
Era assim que Kai se sentia? Todo esse...poder, parecia ser muito tentador, devo admitir.
Andei mais um pouco, analisando o local. A casa por si só era enorme, com alguns cômodos vazios e empoeirados, e mesmo que ela tivesse sido feita para atrair mais claridade com aquelas vidraças enormes, o tapumes nas janelas impediam toda a luz de entrar, assim como aquele muro criava uma sombra escura sobre o lugar. Ninguém ia querer aquela casa. E talvez, fosse por isso que Cecile marcou nosso encontro aqui. A falta de interesse era o melhor tipo de disfarce.
Haviam se passado longos minutos e nada daquela garota aparecer. Acho que ela não havia sido apresentada a palavra "pontualidade". Eu não podia esperá-la o dia todo.
Subitamente, ouvi uma pancada. Forte e alta.
- Cecile?- chamei.
Procurei pelo som, mas ele havia se esvaído da mesma forma que havia chegado. Andei mais um pouco à procura do que ou quem havia feito aquilo.
- Cecile? - perguntei mais uma vez.
Havia apenas o silêncio.
E se realmente tivesse alguém ali? Alguém que que estivesse me seguindo, pronto para me machucar? Será que era uma armadilha?
Todos esses pensamentos cruzaram minha mente num átimo de segundo antes de sentir o toque leve em meu ombro. Dei um pulo, virando em um círculo, com os punhos cerrados, pronta para atacar quem estivesse diante de mim.
- Ei!- ela gritou, quando meu punho estava à uma fração de tocar seu rosto.
Baixei a mão, soltando o ar de forma aliviada.
- Droga, não quebre meu nariz. Já foi bem irritante da última vez- resmungou Cecile exaltada.
- Então não me atraia até uma casa abandonada e depois chegue de fininho- falei, irritada.
Um sorrisinho se formou em seus lábios.
- Desculpe se a assustei.
- Não assustou- menti.
Ela assentiu, como se tivesse acreditado. Seus olhos me mirando com humor.
- Fico surpresa de o seu vamp... Kai, tê- la deixado vir até aqui- disse de forma brincalhona, mas pude sentir a sondagem no ar. Ela queria saber se eu tinha contato algo à Kai.
- Não deixou- dei de ombros- Saí quando ele estava dormindo.
- Deve tê-lo cansado muito na noite passada, então- comentou, caminhando de volta para a sala.
Contive a vontade de soltar um "Não é da sua conta, Courtaud", mas mordi a língua. Não era uma boa forma de começar uma aliança saudável.
A segui, vendo-a ficar mais séria. Fui totalmente sem rodeios.
- Então, o que a fez me chamar aqui?- questionei.
Cecile sentou-se em cima da poltrona forrada de plástico. Seus olhos dourados parecendo divagar no escuro.
- Você já deve ter percebido que esse lugar não é bem um sonho de verão, não é?
-Percebi.
- Quando Apollon se tornou líder, não passávamos de lobisomens desgarrados, expulsos de seus bandos, ou simplesmente nômades sem uma alcatéia. Ele acolheu à todos, prometeu igualdade, força e uma família unida. Os lobos acreditaram e por um bom tempo foi assim- ela suspirou- mas contos de fadas, não duram para sempre. Com o tempo, Apollo, começou a ficar cego pelo poder. Ele queria tudo que lhe foi tirado quando foi expulso de sua própria alcatéia. Não descansou enquanto não destruiu ou derrubou cada um de seus oponentes. Ele abandonou minha mãe para formar uma aliança com um bando mais forte.
Franzi o cenho. Madeline. Era por isso que Cecile a odiava.
- Bem, ele conseguiu- ela continuou- Mas com o passar dos anos, foi ficando cada vez mais paranoico com a possibilidade de algum de nós o deixar. Então, nosso todo poderoso líder prendeu à todos nesse lindo condomínio. Alguns acham que ele fez isso para nos proteger do mundo exterior, mas a maioria sabe que ele só quer ter o controle de tudo.
Sentei na poltrona em frente à ela, a sombra em seu rosto pareceu ficar maior.
- Ele a abandonou- murmurei gentilmente.
Ela ergueu os olhos dourados, me fitando de uma forma dura.
- Ele matou a garota que eu amava, apenas porque eu queria fugir com ela e me aprisionou aqui. Então, não pense nem por um segundo que eu o amo. Ódio... É tudo o que posso sentir por Apollon.
Uau. Muita informação para absorver.
- Eu sinto muito- sussurrei.
Cecile se limitou ao silêncio.
- Qual era o nome dela?- perguntei.
- Não tem importância- foi rude- Não mais.
Passaram-se mais alguns segundos de um silêncio incômodo na sala. Até que a garota se colocou de pé, caminhando de um lado para o outro, como se estivesse pensando em uma forma de dizer algo. O som de suas botas batendo contra o piso não lembrava em nada aquela pancada que eu havia escutado à alguns momentos atrás.
- O que você sabe sobre aquela pedra?
Franzi o cenho.
- Nada que você já não saiba- respondi.
Ela riu, uma risada amarga.
- Apollon não é o tipo de pessoa que compartilha informação- ela cruzou os braços sobre o peito- Eu também não confiaria na família se fosse casado com Madeline e tivesse filhos como Manon e Isabelle.
Estranhei o modo como ela falou dos irmãos.
- O que tem eles? Seus irmãos?
Ela deu de ombros.
- Você sabe que Manon é um mimadinho de merda, como já percebeu. Agora Isabelle... - ela riu mais uma vez-...Olha, eu não digo isso porque perdi meu posto de filhinha do papai, mas aquela garota é uma vadia sádica. Havia uma garota da nossa alcatéia, sabe? E ela era muito bonita. E Isabelle não gostava nada disso. O resultado foi que a garota foi "atacada" e escalpelada viva. O corpo foi encontrado três dias depois, apodrecendo atrás de uma dessas casas- a garota ergueu as mãos no ar- Eu tenho lá minhas suspeitas para com Apollon.
- Como assim?
- Ele faria qualquer coisa pela filhinha querida. Inclusive se livrar de um cadáver- deu de ombros mais uma vez- Bom, é apenas a minha humilde opinião de observadora de fora.
Parei para pensar em Isabelle. A única coisa que sabia a seu respeito era que se parecia muito, fisicamente falando, com sua mãe. Tentei, de alguma forma, ligar aquela criatura de aparencia angelical à crime tão hediondo. Parecia muito... Surreal.
- Eu sei o que está pensando- a loba interrompeu minha linha de raciocínio- Ela não é o que aparenta. Mas, bem, tire suas próprias conclusões.
Ergui uma sobrancelha.
- Você também não é um anjo, pelo que deu para notar.
Ela riu.
Cecile não parecia se ofender muito com as coisas que eu dizia. Acho que ela teve sua cota de ofensas ao conviver tanto tempo com aquela família. A troca de farpas entre ela e sua madrasta não era o que se podia chamar de relacionamento saudável.
- Será que foram os chifres e a cauda pontuda que me denunciaram tão covardemente?- provocou, com um sorriso de desdém.
Me limitei a encará-la.
- Qual é o propósito disso tudo, Cecile?
O pequeno sorriso em seu rosto morreu com a seriedade que nasceu em seus olhos.
- Você se considera uma pessoa confiável?
Estranhei a pergunta.
- Bom, do ponto de vista de Kai, eu não sou- falei simplesmente.
- Não quero saber o que ele acha. O que você acha?
A profundidade daqueles olhos amarelos me fez sentir como uma criança. Droga. Aquela garota era muito estranha.
- Sim- falei com toda a confiança que tinha- Me considero de confiança.
Lembrei de todos os segredos de minhas amigas, Caroline e Elena, que guardei só para mim desde que éramos crianças. Nós crescemos e os segredos também.
- Você seria capaz de guardar um segredo meu? Algo que poderia colocar sua vida em risco apenas por ouvir falar nele?- seus olhos pareciam brilhar na escuridão. A ameaça estava implícita.
Fiquei de pé, a encarando.
- Eu sou uma Bennett- disse- Guardar segredos é apenas uma parte de minha vida.
Ficamos alguns segundos nos encarando. O tempo passando tão lentamente que quase pude ouvir o tic-tac do relógio.
- Você tem minha confiança, então- ela disse, se voltando para a entrada da cozinha mais uma vez- Mas se quebrar isso, vou caçar você e espalhar seus restos por todo esse condomínio.
- Você tem sérios problemas psicológicos- murmurei, a seguindo.
- É o que todos dizem- suspirou, caminhando por um extenso corredor que dava nos outros cômodos da casa.
Cecile parou no meio dele de forma abrupta, me fazendo esbarrar em suas costas. Ela se agachou e arrancou um tapete empoeirado em que estávamos pisando. Tive que pular para o lado para não cair com o puxão.
Gentil como um brutamontes, pensei.
Depoia de retirado do caminho, pude ver o que estava por baixo. Havia um enorme quadrado desenhado no piso de madeira. Uma aljarva estava pendurada no centro dele. Era um alçapão.
Franzi as sobrancelhas. Pelo que sabia da estrutura das casas daquele lugar, nenhuma delas possuía um porão. Bom, aquela era uma exceção, pelo visto.
Cecile levantou a tampa revelando uma buraco escuro. Ela foi a primeira a descer, mas não antes de me lançar seu último olhar de "vou matar você se contar para alguém." A segui, sentindo a corrente de ar fria que corria pelo espaço. O ar era abafado e com um leve cheio de mofo. Apurei meus olhos, vendo a paredes enegrecidas pela umidade, haviam lâmpadas com o brilho fraco e tubulações no teto acima que faziam um som similar as pancadas que eu havia escutado antes.
- Que lugar é esse?- perguntei, um momento depois.
- É onde meu querido pai esconde toda a sua sujeira.
E dito isso, seguiu por aquele corredor mal iluminado comigo em seu encalço. Ao fim dele, havia uma porta metálica, parecendo nova em folha - em contraste com o lugar detonado - que estava trancada com ferrolhos pesados e trancas.
A garota se voltou para mim mais uma vez.
- O que você ver aqui- disse entre dentes- fica aqui. Entendeu?
Assenti.
Então, ela se virou para a porta e começou a destrancá-la. A coisa se moveu com um pesado ranger apesar das dobradiças novas. Então... Estávamos dentro de uma grande sala. A lâmpada no teto era fraca, não deixando uma luz real se espalhar pelo lugar.
Minha visão, assim como antes, se adaptou rapidamente à pouca luminosidade.
A primeira coisa que notei quase que imediatamente foram os rabiscos nas paredes. Eles era feitos com todo tipo de substância, desde caneta permanentemente, lápis, giz, até o que imaginei ser sangue seco. Alguns deles estavam fortemente marcados contra o concreto, como se a pessoa que os tivesse feito tivesse usado apenas as unhas para raspar toda a tinta. Cheguei mais perto de uma das paredes e me deparei com a coisa mais horrorosa que já tinha visto. Era o desenho de uma mulher, usando um vestido longo, seus cabelos embaraçados e o olhar cheio de fúria. Ela estava dentro de um rio, submersa até a cintura, afogando duas crianças. Havia outra, na margem do rio, os olhos abertos para o nada, morta.
Olhei para as outras imagens.
Um homem sendo decapitado, uma mulher sendo estripada por lobos, um homem cerrando a própria perna, um homem esfaqueando o outro, uma mulher afogando um idoso em uma banheira. Me afastei da parede para ter uma panorama melhor e as imagens se entendiam quase que indefinidamente por toda a parede, mais e mais imagens horrendas de morte excruciante. Girei, vendo as outras paredes com desenhos iguais. Todas elas estavam cobertas.
Voltei-me para Cecile, pronta para perguntar que merda toda era aquela, quando ela simplesmente passou por mim e foi em direção ao outro lado da enorme sala.
Então, eu vi.
No canto mais escuro, onde a luz não alcançava, havia uma figura encolhida num canto, seu braço erguido escrevendo algo... Não... Desenhando algo na parede em que estava encostado. Apurei os ouvidos, escutando os sons que a caneta permanente fazia contra a tinta da parede. E havia algo mais. Um murmurar baixo e acelerado, palavras desconexas e desconhecidas para mim.
Encarei as costas de Cecile, ela parecia estar sendo muito cuidadosa ao se aproximar, como se estivesse pronta para desarmar uma bomba.
- David?- chamou com uma voz doce e gentil, que eu nunca teria reconhecido.
Então era um homem?
Ele estava tão encolhido que eu teria o confundido com uma criança. Reparei em suas roupas simples de algodão, manchadas e sujas. Os cabelos pareciam ser negros, mas daquela distância, eu não saberia dizer.
O homem não respondeu.
- David?- a garota o chamou mais uma vez.
Não houve resposta, ele parecia muito entretido com sua pequena tarefa.
- David- ela disse, parando diante dele- Olá, é a Ceci. Lembra de mim? Eu trouxe aquelas cores que você gosta na semana passada. Um dos seguranças me disse que já acabaram e você ficou aborrecido com isso.
Mais alguns segundos de um silêncio constragendor.
Ela olhou em volta.
- Seus desenhos estão ficando...- ela engoliu em seco-... cada vez mais realistas.
A mão de David tremeu por um segundo, fazendo com que seu desenho se desestabilizasse. Mas isso durou menos de um segundo, logo ele retomou o que estava fazendo.
- Bom- Cecile comentou mais uma vez, a voz trêmula- Se você deixasse que os seguranças pintassem as paredes, poderia fazer mais desenhos. Desenhos diferentes...
- Não.
Foi a primeira vez que ele falou, alto e claramente. Sua voz era gutural e profunda, com uma imponência um tanto conhecida.
- Tu-Tudo bem- ela gaguejou- Ninguém vai tocar neles.
Isso pareceu deixá-lo um pouco mais relaxado.
- Você quer alguns cadernos, sabe para desenhar, já que não há mais espaço nas paredes?- ela prosseguiu.
Eu nunca tinha visto Cecile tão intimidada a exposta. Era muito diferente da garota forte e desprezível que eu conhecia.
O homem não respondeu.
- Eu vou pedir para o Carl trazer alguns para você, ok?
Sem resposta. Grande surpresa.
Pensei em perguntar à garota quem era esse David, e porque ele estava preso no porão de uma casa abandonada. Será que era assim que os lobos tratavam seus doentes? E o que a filha de Apollon tinha a ver com aquela situação? As perguntas estavam fritando meu cérebro. Mas todas elas podiam esperar, pois o que eu sentia era pior.
Havia algo naquele lugar. Algo naquela sala.
Mesmo que eu não tivesse mais meus poderes de bruxa, o lado sensitivo ainda estava presente. Eu não estava equivocada, estava nessa à tempo demais para confundir quando havia algo errado no ar.
Um tremor quente subiu por minha espinha, se alojando em minha nuca. Subitamente, eu soube de onde vinha toda aquela opressão. Com os olhos um pouco saltados, olhei para o outro canto da sala, o que ficava em frente à David. Minha visão noturna, não captou nada. Havia apenas um espaço vazio ali. Mas eu sabia que tinha alguma coisa lá. Me observando de volta.
Minhas mãos- com seu tremor habitual- assumiram um ritmo frenético e senti o sangue fugir de meu rosto.
- Cecile?- sussurrei, sem ar para falar uma sílaba mais alta.
Voltei a cabeça para ela, e a vi me encarar rapidamente, parecendo receosa. Então, David, também olhou para mim. A princípio, foi apenas um leve movimento de cabeça, e finalmente, ele estava me encarando. Sua pele era tão pálida quanto a camisa de algodão que vestia, os círculos escuros eram tão proeminentes embaixo dos olhos que o fazia parecer de uma espécie de assombração de daqueles filmes antigos de terror. E mesmo através dos cabelos escuros e gordurosos, pude ver seus olhos.
Senti a parede bater contra minhas costas no momento seguinte. Os olhos. Eu nunca tinha visto nada como aquilo. Eram de um azul intenso, elétrico e brilhante como se ele os tivesse substituído por duas pequenas lâmpadas de néon azuis claras. E na pouca luminosidade, eles se destacavam como dois pontos ofuscantes.
E eles se estreitaram em ameaça.
- O que faz aqui?- sibilou.
Eu não respondi. Havia algo de não natural na forma como ele falava, como se tivesse algo por baixo do tom de sua voz.
- O que você quer?- interrogou.
Pelo modo como me olhava, David, parecia saber quem eu era. Mas, como?
- Eu...- tentei dizer.
- Não queremos você aqui.
Engoli em seco quando ele começou a se levantar.
- David, por favor... - Cecile tentou acalmá-lo, mas isso não surtiu efeito- Deixe-a em paz. Por favor...
Pelo canto do olho, pude sentir aquela coisa se aproximando. Se aproximando do homem.
A figura frágil de David desapareceu quando ficou de pé. Ele era tão alto quanto Kai, e apesar da aparente fraqueza, os músculos ainda estavam presentes sob o tecido simples da camisa e calça. Cecile continuou formando uma barreira entre mim e ele, como se pudesse impedi-lo de fazer algo. Coisa da qual eu duvidava piamente.
- Você não escutou o que eu disse?- sua voz assumiu um ritmo mais frenético e raivoso- Nós não a queremos aqui! E muito menos você, Cecile!
- David... - ela parecia a ponto de chorar.
Ouvi o som de correntes quando ele deu um passo na direção dela.
- Acha que eu gosto de ver você?- disse de forma cruel- Acha que gosto de escutar seu lamento ridículo, enquanto EU fico preso aqui embaixo como um animal perigoso?- seus olhos olhos se estreitaram- Você é uma vadia bastarda Cecile Courtaud. Por isso ele prefereriu seus outros filhos. Você é uma piada e vergonha para nossa espécie. Deveria fazer um favor a si mesma e rasgar a própria garganta e livrar o mundo da sua presença lamentável.
Esperei vê-lo tomar um tremendo soco de quebrar maxilares da garota. Mas tudo o que ela fez foi soluçar e chorar. Nunca pensei que veria algo como aquilo em toda minha vida.
- David... - tentou dizer.
- O DAVID MORREU! QUANDO VAI ENTENDER ISSO SUA ESTÚPIDA?!- ele explodiu, partindo para cima dela.
Com uma velocidade que eu nem sabia que tinha, saltei e agarrei os ombros da garota, a puxando para trás comigo, antes que as mãos dele a alcançassem.
Ele berrou como um animal quando suas mãos foram retidas em pleno ar, sua caminhada parando subitamente. Então, foi aí que notei as correntes de ferro atadas a seus pulsos e tornozelos lacerados com cicatrizes. A única coisa que o impedia de nos atacar.
- Mentirosa!- ele gritou- Você disse que me salvaria! Que eu ia ficar bem e que teríamos a eternidade! Mas estou preso no inferno enquanto você desfruta da sua liberdade! Eu quero que morra Cecile! E você- apontou para mim- Bonnie Bennett. Pare já o que está em curso nessa sua cabecinha, ou então, vou arrancá-la de seus ombros!
Franzi as sobrancelhas. O que ele queria dizer com aquilo? E de onde ele me conhecia?
Subitamente, lembrei de Hana, dizendo que minha chegada e de Kai foi um assunto muito comentado entre os lobos. Mas como David, preso no porão de uma casa, poderia saber disso?
A sensação que tive antes estava mais forte agora. Como se aquela presença tivesse tomado conta da sala. Eu a senti. Me observando. Olhei por sobre o ombro de David e a senti me observar dali.
- Saiam! Não as queremos aqui!- David gritou- Saiam agora!
Ouvi quando uma das paredes se rachou bem atrás dele, a abertura subindo por toda a extensão até tocar o teto. Ela seguiu rapidamente, explodindo à nossas costas. Me afastei antes que alguns pedaços me atingissem.
- SAIAAAAAAM!
Não precisou dizer mais nada.
Puxei uma débil Cecile para fora do quarto e tranquei a porta, mas não antes de visualizar os olhos azuis- elétricos de David uma última vez e a figura escura atrás dele.
Caímos no corredor, assustadas e nervosas. Cecile tremia, com lágrimas tentando escapar de seus olhos dourados, mas como a boa chefe de segurança que era, ela as conteve de imediato.
- Cecile- sussurrei- Quem é ele?
Ela respirou fundo, encostando a cabeça contra a parede e fechando os olhos com força.
- David Courtaud. Meu irmão mais velho.
- O que houve com ele?
- Ele morreu.
- O quê?
Pensei ter escutado errado.
- Ele morreu- ela repetiu- e Apollon o trouxe de volta com aquela coisa. A pedra que Madeline usa no pescoço. Ele também a usou em mim quando a adoeci gravemente, mas ela não surtiu o mesmo efeito em mim. Apenas prolongou nossas vidas, minha e de David. Mas, ele...- ela engoliu um soluço, uma lágrima escapou antes que a contivesse-... Ele enlouqueceu. Aquilo dominou a mente dele.
Era muita informação para absorver. Minha cabeça estava girando.
- Você acha que ele... ainda é o seu irmão? - perguntei, cuidadosamente.
- Sim- respondeu com firmeza- Ele está enterrado ali, em algum lugar no meio daquele monstro que se tornou.
Esperei mais algum tempo, enquanto ela se acalmava.
- Por que queria que eu visse isso?- murmurei.
Ela afastou os cabelos castanhos claros do rosto.
- Porque Apollon está planejando algo grande. Essa pedra, de alguma forma, está envolvida nisso. E acho que ele quer usar você e Kai nessa atrocidade.
- Como sabe disso tudo?
- Eu tenho olhos e ouvidos em todos os lugares por aqui. Como disse antes: nem todos concordam com a liderança de Apollon. Meus espiões, me contaram coisas, coisas que eu mesma averiguei.
- Que tipo de coisas? - inclinei a cabeça em sua direção.
- Ele está fazendo experiências com a pedra. Usando-a em outros lobos. E muitas delas estão dando errado, há muitos outros como David. A única diferença é que ele tem o privilégio de continuar vivo por ser filho do alfa. Mas, ninguém sabe da existência dele. Apollon protege esse segredo à qualquer custo. Mesmo que tenha que matar.
E eu estava em risco apenas por saber. Meu Deus. Em que droga eu havia me metido?
- Onde eu me encaixo nessa história?
- Apollon logo vai passar as informações necessárias para seja lá o que você e seu vampiro, precisem fazer. Você será meus olhos e ouvidos, no que se tratar desse plano. Quando ele der a ordem, eu ficarei sabendo e assim, vou saber como agir para impedir.
Estreitei os olhos.
- Como vou saber se não é apenas um joguete para que você assuma o poder?
Cecile arregalou os olhos.
- Você está de brincadeira, não é? Eu acabei de mostrar o que aquele desgraçado fez ao meu irmão e ainda acha que tenho alguma pretensão de ficar com essa porra de alcateia bizarra para mim? Eu odeio esse lugar. Eu odeio essas pessoas. Tudo o que quero é ter uma vida normal, com meu irmão e minha mãe longe daqui.
A encarei por longos minutos, mantendo a firmeza em meu olhar.
- Eu não confio em você.
- É? Mas eu confio em você- atirou- E sei que vai fazer a coisa certa, porque você sempre o faz, não é? Somos parecidas. Eu sei o que é me sacrificar por pessoas que não merecem que eu o faça.
Olhei para qualquer outra direção, menos para ela.
- Bonnie- disse meu nome pela primeira vez- Se não for fazer isso por mim, ao menos, faça pelo amor que sinto por meu irmão. O que você faria se fosse alguém que você ama nessa sala, sofrendo e implorando por ajuda durante duzentos anos?
A encarei.
- É muito tempo- seus olhos estavam marejados- E nesse período de tempo, a única esperança que encontrei foi sua chegada e a daquele sanguessuga idiota. Sabe o que é ter que pedir isso à vocês? É uma droga humilhante. Mas eu preciso. Pelo David.
Eu sabia o que ela estava sentindo. A dor e a impotência. Mas foi o meu altruísmo que me condenou à uma vida de miséria ao lado de Kai. Eu estava cansada de ceder à todos o tempo todo.
Me levantei.
- Eu preciso ir- comecei a me afastar.
- Eu ajudo você a se livrar dele- Cecile exclamou- De Kai. Eu sei que não está com ele por vontade própria. Se me ajudar nisso, eu me livro dele para você.
Aquilo me fez parar. Olhei para ela por cima do ombro.
- É uma promessa- disse, parecendo ansiosa.
Eu não confiava em mais ninguém.
- Não sei do que está falando- menti e recomecei a caminhar- Não se preocupe com David. Seu segredo está seguro.
Fui embora daquela casa o mais rápido possível. Todas as células de meu corpo lutando para fazer o que eu sabia que era o correto, mas no fundo eu sabia que não era apenas o meu exterior que estava sofrendo mudanças.
À cada segundo que se passava, eu me sentia mais parecida com Kai do que nunca.
Voltei para casa, sabendo que Kai já estaria acordado e me esperando. Eu não queria dar nenhum tipo de explicação para ele. Estava emocionalmente exaurida com a culpa e o terror que aquela sala me causara.
Quando passei pelo batente da porta, pude ouvir o som das panelas sendo furiosamente remexidas no cozinha. Sol estava à todo o vapor. E isso não era bem uma atitude normal.
- Pensei que não voltaria para casa dessa vez- Kai cochichou atrás de mim, seu hálito quente me provocando arrepios que eu conhecia muito bem- Onde esteve?- senti seus lábios roçando em meu cabelo.
Respirei fundo, tentando retomar o controle de meu corpo.
- Fui apenas caminhar um pouco- menti.
- Não tem medo dos lobos lá fora?- havia um quê divertido em sua voz.
- Não é a mim que eles odeiam- dei de ombros.
Suas mãos cercaram minha cintura, colando meu quadril ao seu. Ele suspirou.
- Senti sua falta. Hoje de manhã.
- Você consegue sentir isso? - fui sarcástica.
Kai riu.
- Isso e um pouco mais quando se trata de você- sussurrou, deixando suas presas arranharem o lóbulo de minha orelha.
Me remexi, incomodada.
- No que Soledad anda trabalhando? - mudei de assunto.
Seus dedos delinearam minha clavícula distraidamente.
- No jantar de hoje à noite- disse simplesmente.
- É alguma data comemorativa? Porque se for seu aniversário, posso te dar uma estaca de madeira cravada no seu coração.
Kai riu de novo.
- Você é tão romântica. É uma pena.
- O que é uma pena?- fiquei em alerta.
- Nada- disse rapidamente- Nós teremos uma visita ilustre.
- De quem?
- Sua danadinha. Não estrague a surpresa.
Kai se afastou de mim, me voltando para ele. Suas mãos estavam pousadas nas laterais de meus braços. Seus olhos avaliando meu corpo inteiro.
- Vista algo deslumbrante. Quero que você roube toda a atenção essa noite.
Revirei os olhos.
- Claro, porque sou apenas sua acompanhante de luxo, não é?
Foi a vez dele revirar os olhos.
- Você é a morte do romance, sabia?
- Então, servimos um para o outro- falei, com azedume na voz.
Seus olhos azuis cinzentos pousaram nos meus com intensidade. Não eram parecidos em nada com os de David.
- Você nem faz ideia, BonBon.
Tentei não me sentir ameaçada com o tom de sua voz. Mas Kai já era uma ameaça só pelo fato de existir.
- Eu vou para o meu quarto- anunciei.
- Nosso quarto- avisou, quando eu já estava no sopé da escada.
- Tanto faz- bufei.

LAÇOS MORTAIS | Bonkai |Where stories live. Discover now