37. A Alcatéia de Paris

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Apollon nos guiou por um largo corredor que se parecia com uma mansão Tuddor. O seguimos em meio à toda aquela mobília e luxo, não deslumbrados. E sim desconfiados.
Seus três filhos nos seguiam de perto. Quase pude sentir a respiração baixa e quente de Cécile em minha nuca.
Apesar de eu não gostar da proximidade dele, agradeci internamente por Kai estar segurando minha cintura de forma tão possesiva contra si. De certa forma, me senti protegida, mesmo que todos os neurônios em minha cabeça gritassem o quão errado e assustador era sentir aquilo. Nunca pensei que eu fosse do tipo dozenla em perigo, porém, a convivência com Kai me transformou de modos que eu nem sabia serem capazes.
Era difícil reconhecer meu reflexo no espelho. Às vezes, eu repetia certas coisas para mim mesma. Coisas nada monumentais, mas que ajudavam a não enlouquecer naquela gaiola dourada que Kai criou sobre mim.
Eu sou Bonnie Bennett. Neta de Sheila Bennett. Filha de Abby Bennett. Melhor amiga de Caroline Forbes e Elena Gilbert. Eu amei Jeremy. Gosto de Damon, apesar de ele ser extremamente irritante...
Meu peito doeu nesse instante, mas continuei.
... fui Âncora do Outro Lado, lutei contra os Originais e sobrevivi ao Mundo Prisão.
Respirei fundo.
Eu ainda me lembrava. Não havia enlouquecido. Não realmente.
O som de enormes portas pesadas se arrastando por um tapete oriental caríssimo fez os devaneios sumirem. Apollon seguia à frente, empurrando portas e mais portas sem parar por um corredor que não parecia ter fim. Até que finalmente, chegamos em um enorme portal de madeira vermeha.
O alfa olhou por cima do ombro, para todos nós, como se tentasse ter certeza do que fazia. E ainda sério, a empurrou, abrindo os dois lados da madeira pesada para revelar uma enorme biblioteca.
As prateleiras eram escuras, quase negras e continham mais livros do que uma pessoa poderia juntar em uma vida. A pouca iluminação era um tanto carente, com alguns pequenos abajures aqui e ali em cada parede, mas a iluminação real era fria azulada, vinda diretamente do teto abobadado que crescia metros e metros acima de nossas cabeças. Uma enorma clarabóia circular de vidro deixava a luz da lua minguante mergulhar na sala fazendo-se de luz.
Por um instante, toda a suntuosidade daquela casa deixou de significar alguma coisa, apenas para demonstrar como aquele espaço sombrio era mais acolhedor.
Apollon, caminhou até o centro da sala, seus mocassins ecoando estrondosamente no silêncio do lugar.
- Sentem-se- murmurou, já afundando em uma enorme poltrona de veludo vermelho.
Madeline se posicionou em uma cadeira perto de seu marido. Cécile, ainda nos fitando com desconfiança prostrou-se atrás do pai como um cão de guarda. Os outros irmão pareciam extremamente entediados, como se já tivessem mais conhecimento que nós elevado à potencia. Os vi, indo para o fundo da sala, perto de algumas prateleiras cochichando algo.
Kai avaliou o lugar mais uma vez, assobiando.
- Tem muita magia aqui. Dá pra sentir nos poros.
Apollon deu de ombros.
- Há muita informação nesta sala. Eu seria um idiota se não protegesse este espaço.
Kai deu um sorriso malicioso. Aquela cabecinha perturbada estava tramando algo. Era como a magia naquele lugar. Dava pra sentir.
- Sente-se- Apollon gesticulou para uma cadeira perto de Kai.
Ele o fez.
Por um segundo, fiquei inquieta com a possibilidade dele me puxar para o seu colo. Ele não gostava quando eu me afastava muito. As mãos de Kai estavam sempre me tocando.
Antes que ele pudesse fazer algo como isso, me posicionei atrás dele. Minhas mãos ficando sobre seus ombros.
Kai pareceu relaxar dez vezes mais. Seus ombros ficando menos rígidos.
Interessante...
Percebi o quão perto minhas mãos estavam de seu pescoço. Eu poderia estrangulá-lo naquele momento. Contudo, sabia que não era tão forte quanto ele, e aquilo só o deixaria mais revoltado. E não estava nem um pouco a fim de passar a noite apanhando.
- Vocês estão aqui por um motivo muito importante, sabem bem, se não eu os teria matado naquele clube- um sorriso perverso se espalhou por seu rosto lentamente- Talvez, não você, Bonnie.
Senti Kai se remexer sob minhas mãos. Pousei a mão em seus cabelos castanhos e macios, acariciando.
Isso pareceu acalmá-lo um pouco.
- Acredite, Apollon- sorri com irônia- Eu não gosto de Kai tanto quanto você. Mas, entre ficar viva com você ou morrer com ele, eu prefiro a morte.
Mesmo que ele não estivesse olhando para mim, pude sentir os olhos de Kai sobre mim, me avaliando inquisitivamente.
Apollon riu.
- Veja só... A lealdade está onde menos se espera, não?
- Não tem nada haver com lealdade, é uma questão de saber apostar no peão certo- rebati.
- Pode até ser- concordou- Mas nesse caso, eu sou o rei.
- Que ótimo. Reis também caem. E sabe o que dizem sobre altura e tombos, não?
Ele estreitou os olhos, sorrindo.
- Agora sei porque ele gosta tanto da sua companhia. Você é indomável.
O modo como ele disse aquilo, me incomodou.
Kai? Gostar de alguém que não fosse sua amada pessoa?
Acho que Apollon não conhecia o siginficado do termo "frio como uma cobra."
Um suspiro irritado se fez no ar.
- Podemos começar?- resmungou sua esposa, com os olhos frios e azuis escuros pousados nos meus.
- Claro, meu amor- disse Apollon, todo galante com a mulher.
Alguns segundos tensos se passaram, nos quais, encaramos lobo em expectativa.
Apollon juntou as mãos sobre as pernas longas, ponderando.
- Acho que não conhecem minha história.
- Isso é relevante para a situação?- Kai perguntou, petulante como sempre.
Apollon sorriu, malicioso.
- Pode-se dizer que sou um tanto vaidoso. Mas, nem tanto assim. E sim. Considero meu passado muito relevante nesta situação.
Kai esperou em silêncio, aguardando o que estava por vir.
O lobo fechou os olhos , suspirando, como que em um transe.
- Era o inverno de 1800. Estava frio demais até para aquela época do ano em Paris. A cidade não passava de uma massa de neve e corpos gelados em movimento...
Nesse instante seus olhos se abriram, fitando o nada. Eles estavam tão amarelos que irradiavam luz própria.
- ... A medicina da época não era tão eficiente como a de hoje em dia. Uma simples gripe podia se tornar uma pneumonia, como também, uma simples tuberculose era capaz de atos horrendos com os pulmões dos pobres humanos. A questão... é que houve escassez de comida para o povo da cidade, mas eles conseguiam se virar. No entanto, com o meu povo foi diferente. Os lobos estavam morrendo de inanição. Os animais que viviam em torno das florestas haviam morrido pelo frio ou migravam. Tudo o que conseguimos encontrar eram apenas animais mortos, já em decomposição. E os abnegados parienses não eram tão abnegados quanto imaginávamos. Mesmo que não soubessem o que nosso bando era, eles sentiam. Nós eramos rechaçados dos lugares como... Bem. Cães. Não tínhamos lugar entre eles nem para servi-los nos trabalhos mais indesejáveis. E, claramente, os lobos eram orgulhosos, não aceitariam lamber as botas daqueles humanos imundos apenas por um prato de comida.
Eu era um deles.
Tão orgulhoso de minha raça, mas odiava a decadência de nossa espécie, imposta por meu irmão mais velho e bonachão, Antoine.
Apollon riu desdenhosamente, ao se lembrar dele:
- Ele era um otimista ridículo. Realmente acreditava que as coisas iriam melhorar. Se fôssemos mais ao sul ou quem sabe para o norte? Talvez, com alguma "sorte", não é, poderíamos encontrar comida, ou algum trabalho numa cidade mais afastada. Mas, todos sabiam. Isso não ia acontecer, ninguém aceitava lobos tão bem quanto ciganos. Éramos, a escória de Paris. Se houvesse algum roubo, o ladrão estava entre nós. Um assassinato? Culpa dos sujos ciganos. Uma praga incurável? Certamente nós que a levamos até os pobres gajôs. As opções se esgotavam mais à cada dia. Então, numa certa noite, ouvimos um grito de minha cunhada Illea. Corri até a choupana de meu irmão só para encontrá-lo estendido em sua cama, com a garganta aberta de orelha a orelha. Ainda jorrava sangue quente da ferida. Illea estava desolada.
Eu? Não senti nada. Acho que no fundo, todos nós desejávamos isso, já que a posição do líder não pode ser passada a outro, apenas tomada através da morte. Era uma verdade que ninguém queria admitir, mas a morte de meu irmão foi a liberdade que eles tanto buscavam. Semanas, se passaram sem sabermos quem havia matado Antoine. Provavelmente, foi um lobisomem inferior. Mas quem não queria o antigo alfa morto? Obviamente, a liderança do clã foi passada à meu outro irmão mais velho. Eu era apenas um rapaz, jovem demais aos olhos dos anciões para tomar o poder. Albert, não era o tipo de lobo que gostava de ser contrariado e com o tempo passou a ser um déspota insuportável. Os meios que ele encontrou para alimentar nossa família eram animalescos até para nossa espécie- um sorriso brincou por seus lábios, evidenciando a covinha ao lado da boca- Albert, achava que já que os parisienses não nos alimentavam e nem nos davam os meios para nos sustentarmos, talvez, devêssemos fazê-los de lanche, por assim dizer.
Meus olhos quase saltaram das órbitas. Apollon percebeu.
- Tecnicamente falando, não somos da mesma espécie, então não classifico isso como canibalismo- deu de ombros- Fiz coisas das quais não me orgulho, mas posso dizer que fui muito mais civilizado do que meu irmão. Ele se banhava no sangue dos inocentes. O que no início parecia ser apenas uma medida desesperada para suportar o inverno cruel, tornou-se um hábito para ele. Acho que isso sempre esteva lá, essa pré disposição para a selvageria e maldade. Não que eu pudesse recriminá-lo por sua natureza, mas Albert estava se tornando um tolo imprudente.
Os moradores da cidade, estavam mais atentos para o que estava acontecendo. Estavam compreendendo que aqueles não eram lobos comuns, que eram sempre os mesmos, grandes demais para serem normais, com olhos terrivelmente inteligentes... E humanos. Mais humanos do que qualquer animal. Mas, por um curto período de tempo dispusemos de grande fartura e felicidade, mesmo que Albert estivesse se descuidando. Mas...como eu disse, foi um curto período de felicidade. Na manhã seguinte à um grande banquete, a polícia francesa apareceu em nosso acampamento, fazendo perguntas suspeitas sobre desaparecimentos e mortes de determinados cidadãos. Principalmente, crianças. Conversei com aquele inspetor humano, tentando aparentar a mesma calma rotineira com a qual eu lidava com tudo. Mas, eu não estava surpreso ao notar que ele já tinha sua opinião formada sobre quem estava matando aquelas crianças. Depois que eles se foram, marchei para a cabana de meu irmão, que ele dividia com mais três fêmeas, inclusive, minha cunhada Illea. Com a morte do antigo líder, o herdeiro podia ficar com tudo. Inclusive suas esposas.
Eu não precisei perguntar. Um simples olhar e ele soube do que se tratava. Assim, como eu soube, com um simples olhar que era ele quem estava matando os humanos aos cântaros. 'Pare já com isso antes que você nos mate', rosnei para ele e saí de sua casa sem lhe dar a chance da retórica. Claro que Albert não quis me escutar, à cada dia, mais e mais notícias de mortes por animais vinham estampadas nos jornais. Por mais que eu tentasse impedi-lo de fazer essas atrocidades, as mortes não se acabavam. Isso seria sua ruína, assim como a nossa.
Eu estava cansado de seu descuido, cansado dos olhares que recebia nas ruas por causa dele e de nossa fama. E estava cansado de toda aquela miséria. Porém, eu não era o único exausto daquela situação. Em uma noite de festa para o meu povo, pois celebrábamos mais um nascimento de um novo lobo, uma multidão furiosa veio da Cidade Luz e cercou nosso modesto acampamento. Eles exigiam um culpado pelos assassinatos e mesmo que não tivessem provas, de alguma forma, eles sabiam que o assassino estava entre nós.
Albert, como sempre, estava caindo de bêbado. Ele discutiu com os moradores parisienses, e um deles empurrou uma jovem loba coberta de cortes e hematomas contra o chão. Eles a haviam capturado dias antes, mas pensamos que ela havia fugido. Não era incomum naquela epoca. No entanto, apenas me lembro de escutar os ossos de Albert se partirem quando ele simplesmente se transformou na frente de todos aqueles humanos. Ao contrário dos lobisomens do Novo Mundo, os do Velho Continente podiam controlar suas transformações. Aqueles aldeões presenciaram um filme de terror ao vivo e a cores. Aquela noite nunca poderia ser esquecida, meu irmão matou dez pessoas e mutilou outras seis em um ataque de fúria.
Os sobreviventes ficaram tão assustados que nem sequer voltaram recuperar seus mortos. E eu sabia que haveria retaliação. Durante dias, tentei convencer aquele cabeça dura à irmos embora de Paris , mas ele não queria me ouvir e quando finalmente deu- me razão era tarde demais.
Em uma noite de lua cheia, saímos para uma caçada. Nossa atenção estava concentrada nos indigentes e vagabundos que dormiam nas ruas. Aquele tipo de gente nunca fazia falta para os seus. Mas, todas as ruas estavam estranhamente desertas. Paris não era o tipo de cidade que dormia.
Eu percebi a estranheza da situação nos primeiros cem metros adentro dos bairros fétidos e decaídos. Mas, não meu irmão. Ele estava excitado com a caçada. Seu pêlo castanho avermelhado estava eriçado nas costas. Soltei um ganido e dei alguns passos para trás para alertá-lo. No entanto, Albert não quis escutar.
De repente, uma enorme rede despencou de um dos telhados dos prédios de três andares da periferia onde estávamos. Ela caiu exatamente sobre ele, o enlaçando cada vez mais naquela armadilha.
Ouvi o brado de alegria dos homens lá no alto.
Albert mordia e rosnava, tentando soltar-se de todas as formas possíveis, mas isso só fazia o laço da corda apertasse mais, impossibilitando sua fuga. Naquele momento eu tinha duas escolhas. Contra todas as impossibilidades, podia tentar soltá-lo e ser capturado, assim como o restante de nosso bando. Ou podia escolher a coisa mais óbvia a se fazer.
Olhei naqueles olhos amarelo ocre, com minha decisão tomada. No fundo, acho que eu sempre soube que fora Albert, quem tinha matado Antoine, mas a verdade era cruel demais para se encarar. E meu irmão sabia o que estava por vir.
Então, o forte e teimoso e astuto Albert, deixou de lutar e foi arrastado para um beco escuro. Lembro de ter visto a última centelha dourada de seus olhos na escuridão.
Lutando contra o meu instinto de savar o alfa, levei nossa pequena inquisitiva de caça de volta para o acampamento.
No dia seguinte, a notícia estava nas ruas para quem quisesse ver. O lobo, apelidado de "Courtaud", O Atarracado, líder do bando de criaturas, fora capturado, enforcado e decapitado. Seu corpo ficou exposto por dias na praça principal. Uma amostra do que nos aconteceria se voltássemos a atacar a cidade de novo.
Nunca almejei ser o líder do meu bando, pois quando se tem dois irmãos mais velhos fortes e saudáveis isso se torna mais que um sonho. Mas quando a possibilidade surgiu com a morte de Albert, fiquei mais que estupefato. Eu não fazia ideia de como ser um líder.
Não demorou muito para eu ser chamado diante da alcatéia para receber o título de alfa. Mas houve um fator com o qual eu não estava contando. Albert foi discreto para se livrar de nosso irmão mais velho e assim ficar com o poder. Eu não. Os lobos que nos acompanhavam viram tudo em primeira mão e claro que me denunciaram.
Fui banido da alcatéia de Paris para nunca mais voltar. Não olhei para trás nem uma vez sequer em meu caminho. Soube por outros que a matilha foi embora da França por medo das represálias dos parisienses por conta de Albert.
E eu... Vaguei por toda a Europa e um pouco da Ásia, tanto na forma de lobo, como humano. Conheci muitas pessoas e muitos lugares diferentes. Um deles, foi um monastério na Rússia. Me abriguei lá durante um tempo.
Os monges eram gentis e não se importavam de me parecer com um pedinte vadio. Foram as pessoas mais gentis que encontrei em toda minha vida. Em troca da estadia ofereci meus trabalhos como carpinteiro. Alguns meses de pura paz se passaram, até uma noite.
Já era muito tarde da madrugada. O que me acordou foram os gritos. Gritos horríveis de puro terror e dor.
Corri para fora de meu quarto.
A primeira coisa que senti foi a umidade quente sob meus pés descalços. O cheiro metálico no ar me informou que aquilo era sangue. E quase que imediatamnete, corri para o salão principal, onde o odor pungente do sangue estava mais forte. Deus... E o que eu vi... Corpos e mais corpos daqueles homens amáveis que um dia eu chamei de amigos, espalhados pelo piso, estraçalhados como carniça remexida por abutres. Nunca fui do tipo sentimental ou abnegado, mas naquela noite algo se partiu dentro de mim. O pouco de inocência da juventude se fora após aquela cena. Tudo em que conseguia pensar era em destruir quem havia feito aquilo com meus amigos.
Quase que no mesmo instante, ouvi o som de um berro esganiçado e um 'nãooooo' sendo gritado no ar. E depois o total silêncio.
Tropeçando nos cadáveres e quase escorregando no chão molhado de sangue, corri para a escadaria de onde o som havia vindo. Saí nos corredores superiores que levavam à salas nas quais eu não tinha permissão sequer de olhar as portas, que dirá entrar. Estava muito escuro, mas meus sentidos nunca foram limitados por algo tão trivial quanto a escuridão. Três portas mais à frente, do lado direito do corredor, uma delas estava entreaberta. Sombras se projetavam para fora da sala. Pela envergadura dos ombros, pareciam ser homens.
'Achei !', um deles exclamou, parecendo muito excitado com sua descoberta.
Houve sons de passos pesados do que imaginei ser o outro homem. 'Dê-me, aqui.' A voz desse, ao contrário do outro não tinha nenhuma entonação. Era fria como a de um réptil.
O outro pareceu hesitar, pois o outro deu mais um comando, um pouco mais enfático. E outro cedeu, balbuciando coisas como 'Mas vamos compartilhar o dinheiro, não? Fizemos um acordo...'
O outro que parecia ser o líder não respondeu.
Tentando me manter o mais silencioso possível, caminhei até a porta e observei a através da fresta aberta. O ambiente era uma pequena sala com prateleiras de livros antigos e puídos demais para serem daquele século. Todos estavam espalhados pelo chão, assim como aqueles monges. Deformados, rasgados e em posições horrendas demais.
Engoli as lágrimas de dor e ódio, ao me lembrar que eu havia aprendido a ler livros como aqueles à apenas alguns meses com a ajuda de meus amados colegas do seminário.
Meus olhos correram pelas paredes de pedra iluminadas por uma única vela de cera de abelha. Os três homens permaneciam de pé sobre o centro da sala, acima de um dos monges mais velhos morto e abatido no chão frio. Como um animal de gado. Sangrando, com a espada ainda fincada em suas tripas.
Eles usavam roupas de couro curtido, velho, porém forte o sufciente para uma contenda. Eu podia não conhecer muito do mundo, mas sabia diferenciar um guerreiro de um mercenário. E eles eram a corja.
O grandão de cabelos longos e ensebados parecia ser o líder. Ele segurava algo em uma das mãos, seus olhos tão vidrados que beiravam a loucura.
Por mais que estivesse ansioso para rasgar sua garganta, a curiosidade me prendia em silêncio. O que levava monstros como aqueles a matar outros homens inocentes? Os monges não detinham bens de valor, tudo era deixado para trás, quando entravam para o seminário. Tudo o que podiam cultivar era sua fé e conhecimento. Então... o porquê daquilo?
Meus olhos sublinharam toda a sala mais uma vez, em busca de alguma coisa importante. Algum detalhe que eu havia perdido. Então, percebi o cofre de aço preso à parede, os livros dando espaço para a porta aberta do metal fundido. Havia algumas inscrições contra o metal, numa língua completamente desconhecida para mim. Não era latim, nem russo e tampouco francês... Mas, aquilo com certeza foi feito não para guardar um objeto valoroso. E sim para conter.
Minha curiosidade foi interrompida com a discussão dos três homens.
Aparentemente, o líder não queria vender aquilo que apertava em sua mão com tanto fervor e tampouco dividir com seus companheiros. E isso desencadeou vários xingamentos e espadas em riste.
Os outros estavam dispostos a matá-lo por aquele objeto. Assim como ele também estava disposto a fazê-lo com quem quisesse tirar aquilo dele.
As espadas se chocaram com uma força assustadora, soltando chispas no ar. E o homem não parecia estar nem um pouco intimidado em ter que lutar em desvantagem. Pelo contrário, ele ria como um louco ao cortar a garganta do outro mercenário. Assim como gargalhou ao plantar a lâmina no abdômen do outro e rasgá-lo do estômago à virilha. Eu nunca tinha visto tanta selvageria nem em meio ao meu antigo bando.
Arfando como um cavalo após o curto combate, aquele homem agachou-se ao lado dos companheiros mortos e colocou a coisa sobre o peitoral ensanguentado dele.
Inclinei-me mais sobre a abertura, tentando ver direito o que ele estava fazendo. Precisei esticar um pouco o pescoço para ver do alto, o que estava acontecendo.
Então, a vi.
Era tão linda, mortal e... brilhante. Mais escura que uma noite sem estrelas, com o interior tão claro quanto o dia de verão mais ensolarado.
A gema bruta começou a emitir um brilho baço sobre o corpo morto daquele homem. Até que a luz tornou-se quase cegante de tão clara.
E juro por Deus, que vi a mão daquele homem se mover. Sacudi a cabeça, pensando estar vendo coisas, depois de todo aquele trauma. Mas, a mão se moveu mais uma vez, as unhas raspando contra o chão de pedra até se soltarem da carne de seus dedos.
O líder começou a balbuciar alguma coisa, que logo se tornou mais audível com o som de seus gritos histéricos e fora de si. 'Funciona... FUNCIONAAAA!!!'
Então, o corpo morto começou a ganhar vida mais uma vez, estremecendo com convulsões violentas, enquanto o outro homem urrava em sua alegria sádica. Os olhos do defunto se abriram, azuis brilhantes como a pedra.
Naquele momento, entendi o motivo dos frades terem escondido aquela pedra. Aquilo era uma atrocidade que desafiava as leis naturais da vida. Uma blasfêmia contra a própria criação de Deus. Mas isso não me impediu de observar aquele brilho com a mesma admiração louca daquele mercenário.
O poder daquela pedra... Era inestimável. Compreendi naquele instante o porque de ele não querer vendê-la. Dinheiro nenhum podia comprar longevidade.
Entretanto, acima daquela ganância horrenda que crescia dentro de mim, o sentimento de vingança ainda estava presente. A morte de meus amigos não sairia impune.
O corpo do homem morto ainda se contorcia, o corte em sua garganta suturando - se numa velocidade incrível para um simples humano. Um rosnado, cresceu em meu peito, enquanto os ossos de meu corpo se partiam e reagrupavam na nova forma. A de predador.
Antes que o mercenário louco pudesse se dar conta do que estava acontecendo, pulei sobre suas costas, abocanhando seu pescoço, até ouvir o som de sua coluna se partindo como um graveto. Não satisfeito, forcei meus dentes até arrancar sua cabeça, jogando- a no outro canto da sala vendo seu corpo mole cair sobre o piso.
Me aproximei do antes defunto - agora algo entre este mundo e o outro - e abocanhei a pedra sobre seu peito. No mesmo instante, a luz enfraqueceu, assim como o poder de cura de seu ferimento. O brilho azulado em seus olhos se apagou até que não restasse nada além da morte por detrás daquelas órbitas.
Sem olhar para trás, ainda na forma de lobo, eu fugi na noite fria. Para longe daquele lugar que antes fora minha casa e agora estava infestado de morte. A pedra ainda estava presa entre meus dentes quando fiz a promessa à mim mesmo de que a protegeria como meus antecessores."
Os olhos amarelos de Apollon finalmente voltaram a nos enxergar, como se ele tivesse saído de um túnel de lembranças fortes demais para serem esquecidas.
Ele sorriu mais abertamente, em meio ao silêncio cadavérico da biblioteca.
- Anos mais tarde, ainda perambulando pela velha Europa, encontrei lobos como eu. Sem matilha e desgarrados. Eles precisavam de um líder, assim como eu de uma alcatéia para comandar. E foi assim que meu "felizes para sempre" começou. Fim.
Aquela foi a primeira vez que vi Kai ficar completamente silencioso. Quase não senti o movimento de seus ombros embaixo de mim.
Percebi seus olhos focados em Madeline. Assim como ela o mirava com um divertimento maldoso. Entretanto, os olhos dele não estavam interessados nos atributos físicos da loba e sim no colar que ela sempre carregava consigo. A gema azul cuidadosamente lapidada, presa à uma corrente ligeiramente grossa de ouro.
- Todo esse poder na minha frente o tempo todo e eu não percebi...- Kai murmurou, admirado.
A loba arqueou uma sobrancelha ruiva, sorrindo como se ele a tivesse elogiado, embora estivesse falando da pedra de ressurreição em volta de sua garganta.
- Eu não seria tão tolo à ponto de deixar minha esposa andar com artefato tão poderoso por aí, sem um feitiço para encobri - lo de sifões de magia como você, meu caro, Malachai.
Kai lançou o sorriso mais encantador do mundo na direção de Apollon.
- Eu nunca roubaria de um amigo e muito menos de uma dama linda como essa.
Eu não precisava ser esperta para saber que ele queria dizer o contrário daquilo.
Uma voz interna em minha cabeça começou a latejar. Kai nos envolveria em mais alguma encrenca com certeza.
- Ok. Você contou sobre a pedra milagrosa, mas onde nós nos encaixamos nessa equação?- questionei, totalmente desconfiada do fato do lobo ter compartilhado aquilo conosco.
Apollon se colocou de pé, se cobrindo com suas feições de homem de negócios.
- Como percebeu- começou, colocando uma das mãos no bolso do paletó- Essa pedra é extremamente poderosa. Em todos esses anos, ninguém soube de onde ela surgiu, mas seu paradeiro remonta à China desde o ano 3.000 antes de Cristo. Talvez ela seja mais antiga que isso. Não sabemos ao certo. O que eu sei é que foi preciso um feitiço extremamente forte para conter a magia dentro dela. A domesticamos, por assim dizer. Mas, isso não a impede de ser malcriada de vez em quando. Seu poder foi usado muitas poucas vezes, pois os resultados variavam de indivíduo para indivíduo. Em alguns...- sua voz falhou um pouco, mas ele logo recobrou o timbre-... casos é totalmente catastrófico. A questão é...- seus olhos pousaram sobre mim e Kai-... que precisamos de alguém para mediar esse poder.
O vampiro riu.
- Então, quer dizer que vocês estão perdendo o controle de uma pedrinha mágica?
A expressão séria de Apollon tornou-se irritadiça.
- Não é apenas uma "pedrinha mágica". Ela tem vontade própria. Está ficando cada vez mais impossível de controlá - la.
Olhei para Madeline, que encolheu à menção da pedra rebelde em seu pescoço. Pela primeira vez em muito tempo, a observei com clareza. Haviam marcas avermelhadas onde a pedra repousava em sua pele, como se aquilo a estivesse queimando viva.
Franzi o cenho, saindo de trás da cadeira de Kai. Caminhei na direção da mulher ruiva , com meus olhos pregados naquela coisa.
Madeline rosnou para mim, quando fiz a menção de tocar na gema. Arqueei uma sobrancelha, mostrando minha cara de quem ia espancá-la até desmaiar se ela ousasse me morder.
- Deixei - a, meu amor- pediu seu marido.
Ela não pareceu feliz, porém deixou - me tocar na pedra. Quando encostei na superfície espelhada, senti a quentura de imediato. Acho que perdi a digital do dedo indicador.
- Ah!- dei um gritinho com a queimadura.
Ouvi o ranger da cadeira de Kai, quando quando ele se colocou de pé no mesmo instante. O ignorei, encarando Apollon com uma descrença assustadora.
- Você ficou louco?!
Ele suspirou pacientemente.
- Sei o que está pensado...
- Pensando?!- exclamei- Isso é magia negra! Você está fazendo sua mulher andar por aí com uma espécie de ogiva nuclear que pode explodir à qualquer momento pendurada no pescoço!
- Também não é para tanto...- ele tentou debater.
- Kai. Vamos embora agora.
Marchei para ele, e o puxei pela mão sem me importar com sua opinião sobre aquilo.
- Bonnie...- começou.
- Cala a boca! Eu não vou me envolver nisso. E você não vai me obrigar- continuei o arrastando até a saída.
Apesar de Kai ser muito mais forte que eu, ele não tentou se afastar ou me refrear. Apenas me seguiu com uma espécie de submissão estranha.
- Se mudarem de idéia estão convidados à voltar- Apollon gritou do fim do corredor com uma confiança ultrajante.
O carro já estava à nossa espera do lado de fora da mansão. Quando estava quase na porta traseira do carro uma vertigem me pegou, minhas pernas ficaram moles como massa de modelar.
Kai me segurou antes que eu caísse sobre o teto do carro.
- Bonnie?!
Através dos pontos negros sobre o pano de fundo, pude ver a expressão pálida de Kai. Ele parecia.... preocupado? Não. Isso não era possível.
- Eu... Estou bem...- arfei, ainda mole em seus braços.
- Não. Você não está- ele grunhiu.
E subitamente fui içada do chão como se não pesasse nada. Seus braços estavam em volta de mim, me prendendo em seu peito.
- Para casa- ele avisou um lobo que se aproximava.
O cara fez um muxoxo, mas obedeceu o vampiro.
Todo o caminho me pareceu um inferno sobre rodas. Minha cabeça rodava e uma intensa vontade de vomitar se apossou de mim. Kai continuou me segurando sobre suas pernas. Meu rosto estava escondido dentro da lapela de seu terno.
Jesus... até o perfume dele estava me deixando enjoada...
Pulei de seu colo em um átimo de segundo.
- Eu preciso vomitar!- avisei, abrindo a porta do carro em movimento.
- Para essa droga!- Kai ordenou.
O motorista brecou no mesmo instante, apavorado com a idéia se de eu sujar o carro de seu patrão.
Saltei para fora do automóvel, caindo de quatro sobre o gramado de alguém. Então, soltei tudo que tinha em meu estômago.
Kai ficou logo atrás de mim, segurando os fios de cabelo que haviam se soltado do coque que eu havia feito.
- Sai!- rosnei para ele, tentando empurrá-lo para longe de mim. Outra onda de vômito me interrompeu.
Kai se recusou a me soltar, uma de suas mãos desceu por minhas costas esfregando gentilmente e dando alguns tapinhas.
Ele não era muito bom naquilo.
Mesmo após ter colocado tudo para fora, meu estômago contraía junto com todas as vísceras dentro de mim. Foi a dor mais insuportável que já senti, como um monte de facas se enterrassem ao mesmo tempo dentro de mim.
Aos poucos, ela começou a ceder. Até que finalmente pude abrir os olhos.
E saltei, caindo sentada no colo de Kai.
No chão, onde eu havia deixado o que imaginava ser meu jantar estava uma enorme mancha de sangue. Olhei para minhas mãos trêmulas e sujas de vermelho.
Aquilo havia saído de dentro de mim.

♥♥♥♥♥

Oi seus gostosos!

Sentiram saudades? Eu também senti! Desculpem a tia Bia. Meus bloqueios estão vindo com portadas no meu cérebro. E sem falar em todos os dias que fiquei sem Internet. Tá ficando um pouco tenso, mas estou dando meu jeito aqui pra escrever.
E ora, ora... Agora sabemos o que Apollon tanto tramava naquela cabecinha de lobo francês, né nom? E quanto à esse final meus amores? O que acharam?

Beijinhos ('*')/ Até mais xxx.

P.S: Feliz Natal e Feliz Ano Novo super atrasados! :v ♥♥♥

LAÇOS MORTAIS | Bonkai |Where stories live. Discover now