18. Silêncio

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Eu ainda fitava os olhos mortos de Quinn quando Kai me chamou. Acho que foi na terceira vez que percebi que ele falava comigo.
Minhas mãos recomeçaram com a habitual tremedeira. Todo o meu corpo parecia ter sido esculpido em uma pedra de gelo. Mas, ainda assim, eu não estava tão obtusa à ponto de não notar a pequena mulher de meia idade ao lado do vampiro.
- Bonnie- ele sorriu para mim- Esta é Soledad Hernandez. Mas, pode chamá-la de Sol.
A mulher de pele dourada e olhos escuros sorriu timidamente para mim. Ela era rechonchuda e baixinha, mas parecia forte o suficiente para trabalhar o dia todo.
Olhei novamente para o corpo de Quinn, ainda perturbada e me perguntando como aquela senhora não se incomodava com aquilo. Ainda mais com o fato de eu estar coberta de sangue. Do meu. Mas, ainda assim, era perturbador.
- Você a compeliu...?- eu estava um pouco confusa pelos recentes acontecimentos.
Kai sorriu mais abertamente.
- Sabe, tinha esse restaurante de enchiladas em Portland que eu adorava frequentar, antes do meu pai resolver que eu era...- riu-... uma "ameaça para a sociedade" e me prender em outra dimensão. E já que nos mudamos para cá, achei que seria um pouco inconveniente ter que ficar indo até lá para comer minha comida preferida, então... resolvi trazer a Sol para cozinhar pra gente!
Eu nunca estaria chocada o suficiente com Kai.
- Você a obrigou a largar toda... sua vida, só porque gostava mais da comida dela?- fiquei estarrecida- Ela deve ter uma família, Kai! Amigos, filhos, um marido...
Ele revirou os olhos.
- Eu não a sequestrei, Bonnie- resmungou- Apenas mostrei as vantagens em ser nossa cozinheira do que ficar presa naquele buraco em que trabalhava. E o marido dela já morreu. Os filhos nem ligam mais para ela. Bem... pelo menos, eu acho.
Encarei a pequena mulher com aflição, imaginando em que horrores resultariam sua pequena estadia conosco. Kai conseguia matar e destruir tudo à sua volta.
Intencionalmente ou não.
- Isso é loucura- tentei debater, descendo de cima da mesa- Você não pode trazer uma pessoa para sua casa e resolver que ela vai fazer o que você mandar.
- Posso sim- disse, dando de ombros- Afinal, eu sou um vampiro. O poder de super hipnose serve para isso. Mas já que não gostou... posso me livrar dela...
E deixou as presas à mostra, ficando perigosamente perto do pescoço da mulher.
- Não!- gritei, estendendo a mão em um pare- Ela fica aqui, só não a machuque.
Kai se afastou, sorrindo em satisfação.
- Muito bem. Sol pode fazer companhia à você quando eu não estiver por perto.
Entendi o recado. Ela ficaria de olho em mim.
- Sol - Kai disse, olhando para a mulher- Acompanhe, Bonnie até o quarto dela e a ajude a se limpar. Depois mostrarei o seu quarto, sí ?
Ela assentiu com um sorriso gentil, totalmente inocente quanto às atrocidades das quais ele era capaz.
A mulher pegou minha mão com gentiliza e proferiu algo em espanhol que não compreendi. Parecia estar acatando a ordem de Kai.
Dei um último olhar para Quinn, ainda caída sobre piso, com sangue se espalhando à sua volta.
Eu nunca esqueceria seu olhos vítreos ainda mirando o nada em busca de Kai.

◆◆◆◆◆

Sol passou a maior parte do dia comigo. Eu não fui uma boa companhia para ela, por causa de meu estado apático e ocasionais ataques de choro.
Tudo passou em automático.
Sol me banhou e escolheu roupas, que eu nem me dei ao trabalho de ver. E depois fiquei deitada sobre a cama, olhando para a parede que ficava à uns bons metros de mim.
Minha visão focava e desfocava, em uma tentativa de distrair a mente que insistia em manter a visão de uma garota morta, esfaqueada por mim.
Quinn, lamentei.
Por um segundo, minha visão ficou... estranhamente anormal. Houve um ligeiro tremor e a parede pareceu mais cheia de detalhes.
Consegui ver cada vinco, cada relevo e arranhão sobre a superfície. O ar também tremulava com os grãos de poeira nos raios de sol que se infiltravam pela janela fechada. Eles rodopiavam no ar.
Por um segundo achei que poderia descobrir a textura deles, do que eram feitos...
- Señorita?- chamou, Sol.
E tudo, rapidamente, voltou ao normal. Não consegui ver mais nada. Tudo estava em seu devido lugar. Em sua própria monotonia.
Encarei a nova governanta- como Kai a batizou- que segurava uma bandeja preta de plástico, com uma xícara fumegante de chá e alguns bolinhos, sobre ela.
- Eu não quero, Sol- murmurei, me virando no colchão- Não estou com fome.
Houve uma série de resmungos em espanhol e ouvi seus passos. O colchão afundou atrás de mim.
- Beba, señorita - pediu segurando a bandeja diante de mim, mas havia uma firmeza incontestável em seu tom de voz. Como o de uma mãe que está acostumada com a malcriação de seus filhos.
- Sol...- tentei dizer.
- Beba.
Suspirei, e peguei a xícara cor de rosa em minhas mãos. A governanta sorriu em sinal de vitória.
- Ahora, tienes que alimentarse - murmurou em espanhol, estendendo o prato com bolinho.
- Que...? Não, Sol, eu não quero nada.
A mulher ficou me encarando por um tempo indefinido. Sua paciência era algo realmente impressionante, pois não se levantou até me ver pegar o primeiro bolinho. E só sorriu quando me viu mastigá - lo.
Meu estômago roncou ruidosamente. Eu não tinha percebido que não havia me alimentado até aquele momento.
Praticamente engoli inteiros os bolinhos restantes.
A governanta parecia satisfeita com minha atitude. Não demorou muito para que ela se levantasse, fazendo a menção de trazer mais comida. Se Sol continuasse daquele modo, eu ficaria gordinha. Mas, não era isso que me preocupava.
- Soledad...- chamei, segurando sua mão sobre o colchão com força- Pode ficar aqui?
Ela não parecia entender todas as coisas que nós dizíamos, mas acho que captava o essencial.
Seus olhos castanhos pousaram nos meus e por um segundo... Ela pareceu comprender minha dor.
Ela voltou a sentar-se ao meu lado. Fez um leve acenar.
Deitei a cabeça em seu colo e senti suas mãos acariciarem meus cabelos.
- Eu sou... um monstro?- só percebi que estava chorando, ao ouvir os soluços em minha voz.
Ela não disse nada, apenas continuou afagando meus cabelos.
Depois do que se pareceu um longo tempo, finalmente ela disse algo. Mesmo que meu espanhol da época do colegial estivesse enferrujado, consegui comprender suas palavras:
- No pareces un monstruo.

LAÇOS MORTAIS | Bonkai |Where stories live. Discover now