𝙲𝚊𝚙𝚒𝚝𝚞𝚕𝚘 𝟹𝟾 - 𝙰𝚗𝚝𝚎𝚜

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Do alto de uma laje qualquer, Anahí e eu observávamos o Chapadão. Dali dava para se ver tudo, desde as crianças e adolescentes voltando do seu colégio pelas ruas movimentadas do morro quanto uma visão privilegiada da quadrinha velha de futebol, onde vários garotos jogavam bola.

— Ali é a boca de fumo principal, Poncho fica lá. — Anahí apontou para uma casinha desgastada ao lado de um barranco. — A quadra onde rola os bailes... — Apontou para outra direção. — Eu estudei ali! — Falou, apontando para uma escola caindo aos pedaços bem perto de nós.

— Está desativada? — Perguntei.

Ela concordou.

— Relíquia mandou derrubar. — Ela revirou os olhos azuis. — Ouvi dizer que querem construir uma casa das primas ali.

Olhei estranho para o local e imaginei o quão sem noção era um bordel ser construído no lugar de uma outra escola.

— Sério? Estão trocando educação por prazer pago? — Falei enojada.

— São tudo uns idiotas mesmo! Vão gastar a mixaria do salário nessa porcaria, dá pra acreditar? — Anahí reclamou. — Agora bora descer? Tô com um buraco na barriga, se pá tem uma festinha pra gente colar mais tarde.

— Não vai dar... Relíquia me intimou para mais tarde e antes do meu algoz quero dar um pulo em casa. — Falei com descrença. Anahí riu e fez um sinal pornográfico com as mãos, insinuando que iríamos fazer bastante sexo. — Para já com isso, sua maluca!

— Vai dar a noite toda! — Disse entre a gargalhada escandalosa e saiu correndo quando ameacei avançar em cima dela.

•  •   •

O táxi que eu chamei me deixou em frente a minha casa. Entrei e me deparei com duas malas no meio da sala, fui até lá e me sentei no sofá, sentindo umas dores nos pés por andar aquele morro hoje.

— Cida! — Gritei pela empregada. Não demorou nem dois minutos e ela apareceu, com uma cara preocupada e secando as mãos no pano de prato. — Meus pais estão indo viajar?

— Não menina... — Ela falou entristecida.

— Então de quem são essas malas? — Perguntei, me levantando.

— São suas coisas! — Respondeu e eu a encarei surpresa.

— Minhas? — Perguntei boquiaberta. — Como assim, Cida? Não pedi para ninguém tirar minhas coisas do closet!

— Mas eu pedi. — Falou uma voz atrás de mim, descendo as escadas. Olhei para minha mãe, que me observava com um ar esnobe e superior.

— Posso saber o porquê? — Perguntei confusa.

— Porque a partir de hoje você não mora mais na minha casa! — Respondeu ríspida e parou na minha frente, com seus grandes saltos de bico fino a deixando alguns centímetros maiores do que eu. — Não depois do que me fez passar ontem Dulce Maria, da vergonha que me causou na frente de todos os convidados. Sabe com que cara eu fiquei o restante da ceia?

— Dane-se os seus malditos convidados! — Gritei, deixando o choro que estava entalado na minha garganta sair. — Hoje é Natal, sabia mãe? Era para ser um dia especial, era para você me tratar diferente!

Tampei os olhos e dei as costas àquela mulher que supostamente devia me amar e cuidar de mim. Ouvi Cida deixar a sala a passos rápidos e me senti envergonhada por ela ter presenciado o meu momento de fraqueza.

— Como tem a frieza de me descartar feito lixo? Eu sou a sua única filha! — Murmurei, limpando minhas lágrimas furiosamente. — E cadê o papai? Ele sabe disso, que está me expulsando de casa?

— Seu pai não tem que achar nada! — Ela enfatizou. — Ainda não percebeu que tudo que eu falar nessa casa será acatado? Você acha mesmo que seu pai ficaria do lado de uma menina insolente e mimada feito você? Olha o que você nos fez passar ontem!

— Você estava me humilhando na frente de todo mundo! — Voltei a gritar, chorando copiosamente. — Assim como você fez a vida inteira. Me diminuiu, me menosprezou… O que eu te fiz, hein? O que eu fiz para você me odiar tanto assim, mãe?

— Mesmo agora depois de tudo, continua sendo a mesma filha ingrata que sempre foi. — Cuspiu as palavras na minha cara. — Eu te dei tudo do bom e do melhor, Dulce Maria, te criei para ser uma dama de alta classe… — Me mediu de cima a baixo, desgostosa. — Só consigo olhar para você e ver que eu falhei miseravelmente!

Chorei...

Chorei porque doía muito ouvir aquilo da minha própria mãe.

— Se eu sair por aquela porta, eu não vou voltar... — Garanti, sem pestanejar um segundo. — Você nunca mais vai me ver.

Vi ela engolir em seco, temerosa, mas seu orgulho falava mais alto, como sempre.

— Muito bem, quer que eu chame um táxi? — Perguntou com indiferença.

Olhei-a.

Tantas emoções, sentimentos conturbados, em um só olhar. E eu só conseguia pensar em como a minha mãe nunca havia me dedicado sorrisos, abraços ou palavras de carinho.

Nada! Por mais simples que fosse.

Depois de pedir um Uber, me preparei para deixar a casa onde havia crescido. Não tinha certeza direito para onde iria, o dinheiro que economizei nos últimos meses não daria para pagar um hotel por muito tempo. Bruna estava viajando com o seu pai, então estava fora de cogitação ficar hospedada na casa dela. Não queria incomodar a privacidade dos pais de Maite, já que ela mesma quase não passava mais tempo no apartamento deles. Só me restava uma única saída. Anahí.

Pelo menos naquele momento ela poderia me acolher lá no morro, até que meu pai me procurasse para resolver aquela situação inoportuna. Quem diria, que logo ele, a pessoa em quem eu mais confiava no mundo iria me desamparar no momento que mais precisava dele.

— Um dia você vai voltar, Dulce... Vai bater nessa porta e implorar por minha ajuda. — A ouvi dizer assim que alcancei a maçaneta da porta, com minhas malas. — E eu vou estar aqui, esperando ansiosamente por esse momento. — Sorriu mostrando uma falsa felicidade, era tudo fachada.

Pensei em respondê-la da maneira que merecia, mas ela não merecia mais nenhum minuto do meu tempo. 

— Você vai me perder da pior forma, mãe.

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Dono do Morro [M]Where stories live. Discover now