Reinado das sombras

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                O dia estava quente e eu sabia que o verão estava chegando. Nunca fui tão fã do calor, afinal, é mais comum alguém andar pelas ruas com um manto sobre a cabeça no inverno do que em estações quentes, além de que, quanto maior a temperatura, menor a quantidade de roupas que as pessoas usavam e maior a probabilidade de sentirem a mão de outra pessoa em seu bolso. Ou melhor, isso poderia acontecer com quem não tem tanta experiência.

Não vou me tratar como superior ao risco de ser pega à cada pequeno furto, mas experiência não me faltava. Meus dois dedinhos mindinhos ainda em minhas mãos comprovavam minhas habilidades enquanto as praticava embaixo dos narizes dos sentinelas da capital, guardasda coroa que são designados às ruas. Ladrões comuns pagam o descuido de um roubo com esses dedos como delação. Ninguém quer alguém com dedos faltando dentro de sua loja.

Caminhava tranquilamente pelo crepúsculo enquanto a noite da cidade despertava. Hoje era noite de feira na cidade, algo que sempre me animava. Produtos de vendedores de todos os continentes nos eram dispostos, vantagem para a capital do nosso reino, dono do porto onde a maioria das rotas marítimas passavam e era quase um pedágio para os navegantes passar pelo menos uma noite aproveitando a hospitalidade do Reino de Althaia.

Era um grande ponto comercial, conhecido no mundo inteiro, com tanta gente indo e vindo o tempo todo, nunca nos faltava diversidade e novidade. Atraía turistas de todos os cantos apenas pelas nossas ruas em dias de feiras, feiras essas que aconteciam quatro vezes por semana, sempre em rotação de gente e produto. O navio que havia trazido novas sedas dos reinos do continente do norte na última feira não era o mesmo de agora e tampouco eram seus mesmos tecidos.

Uma grande festa para alguém com a mão leve.

Passando pelas vias principais em meu caminho até a igreja, via as tendas e as barracas sendo montadas, cargas sendo organizadas para a exposição, a luz do sol sendo substituída pelos lampiões e a noite ganhando vida. Ainda faltariam algumas poucas horas até que a movimentação estivesse em seu ápice.

Com os últimos raios solares no céu, cheguei à igreja principal, que ficava na praça central da cidade, a qual também era a maior, a mais conhecida, mais ornamentada e mais visitada. Fiz uma breve reverência com a cabeça e adentrei. Não que eu realmente fosse fiel aos deuses de muitas faces, mas eu o fazia por hábito (e, talvez, um resquício de respeito). Não orava para eles há 8 anos e não senti mudanças, quer dizer, senti –para melhor. Talvez tenha aprendido a me cuidar por não mais depositar minha esperança que alguma face de algum deus o faria. Nesse mundo, era eu por eu. E acho que me saí bem. Não é para qualquer um conseguir se virar durante 9 anos na rua e continuar chegar viva aos 17.

Ao passar pela porta que sempre estava aberta, já era possível escutar alguns sinos tamborilando entre si, as cadenciadas lamurias das viúvas cujos maridos haviam morrido nas batalhas, cobrindo-se de azul em respeito aos seus falecidos, os cânticos das devotas que apareciam todas as quartas com velas novas para os deuses, as preces sussurradas pelos mais velhos e as famílias que visitavam o local nos dias sagrados, como hoje, a primeira quarta-feira do mês. Saúde, bênçãos, proteção era o que se pedia de praxe, no entanto, recentemente, fui escutando alguns acréscimos em suas orações: Livramento da mania do oráculo era o que mais se ouvia. Revirava os olhos ao escutar essas palavras. "Mania do oráculo".

Lenda que havia surgido depois de uma boca distorcer uma febre e passar para outra que, por sua vez, distorcia mais assim por diante até gerar o terror generalizado. Pessoas que ficavam doentes e fanáticos que não cuidavam, achando que era alguma espécie de maldição além da capacidade de compreensão humana. Febres que chegavam no nível de delírios que poderiam ter sido tratadas se não fossem por fiéis alienados. Era uma tentativa triste de trazer um antigo mito de volta à vida, contudo, não era nada além disso: um mito.

O nome da sombra - Crônicas de sombra e luzWhere stories live. Discover now