Calia

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_Torryn_

Calia...
Há quanto tempo esse nome não surgia em minha mente?!

Pensar nele agora, o gosto dele em minha boca soava como um fantasma.

Esse fator pode ter sido influenciado também por ter pensado por muitos anos que sua própria dona se encontrava morta. Há 10 anos.

Pensava que seu final não teria sido tão diferente do de sua mãe. Eu sabia. Todos sabiam.

Entraram em sua casa no meio da madrugada, só as duas na moradia e, no dia seguinte, minha antiga e querida professora estava deitada no meio do chão da sala com sua garganta cortada e uma grande poça vermelha escura ao seu redor. Eu tinha visto aquilo, mesmo que de relance, não queriam que eu observasse aquela cena e desviaram meu olhar. Ela, no entanto, com apenas 7 anos, não estava lá. Procuramos pelos arredores da vizinhança, pelo matagal, a esperança de que ela ainda estivesse viva para quem estava nas buscas foi se esvaindo a cada hora que passava.

O que mais havia nos assustado foi como aquilo aconteceu. Quem morreu durante a tomada de reino eram pessoas que estavam nas linhas de batalhas ou civis no local errado na hora errada (como tinha acontecido com Giulia), abatidos por efeito dominó, nunca tinham invadido casas de pessoas não importantes na calada da noite para assassiná-los. Foi chocante e apavorante para nossa área. Nos entocamos mais do que já estávamos fazendo, evitando sair de casa o máximo possível, protegendo uns aos outros.

Agora, tinha o conhecimento de que Calia estava viva, mesmo não sabendo como. Está com 17 anos agora, não tinha mais nada daquela criança agitada e falante –Sombra, como era referida nesse momento. Já estava uma mulher, havia crescido em suas feições. Se eu passasse por ela em uma rua qualquer, não a reconheceria.

Também não tinha quase nada de sua mãe, uma mulher ruiva sorridente, sardas acobreadas salpicadas pelo rosto, gentis olhos castanho claro, um jeito mais desajeitado ao andar e uma voz doce, que te fazia querer escutar sempre mais. Calia era o oposto disso.

Seus cabelos pretos, duros e quase inflexíveis olhos castanho escuros, a delicadeza e leveza em cada passo que só uma ladra ou dançarina poderia ter e uma voz mais baixa, rouca, direta. Contudo, algumas feições eram as mesmas: seu nariz, sua boca, seus traços finos pelo corpo. Na verdade, eu não poderia julgá-la em base do nosso encontro hoje, meus pensamentos nela enquanto caminhava pelas vielas escuras até a minha casa. Era a primeira vez que eu a via em muitos anos, em um quarto escuro, sem que ela soubesse da minha presença (ou melhor, sem que ela soubesse até estar no mesmo cômodo que eu) e ainda se sentindo ameaçada, constantemente em defensiva. Talvez sua expressão fosse mais branda do que a que eu observei hoje.

Ao pular de sua janela, não consegui evitar de me sentir culpado. Não queria que ela me enxergasse como uma ameaça, queria que fosse um reencontro de antigos conhecidos, amigos, até. Sabendo pelo que ela passara, ou pelo menos um pedaço que fosse, queria que ela sentisse alívio ao rever um rosto familiar, não que se sentisse intimidada. Seus olhos estavam arregalados e, mesmo querendo passar segurança e força, ela estava assustada, percebi até mesmo na luz precária.

Não queria que se sentisse incomodada com a minha presença apenas por ela, também por sua mãe. Ela cuidara de mim como se também fosse da sua família e, agora, poderia retribuí-la cuidando de sua filha, pelo menos que soubesse que tinha alguém ali por ela. E não foi esse o primeiro efeito que causei.

Queria poder dizer que esses foram os únicos motivos para que eu fosse atrás dela, porém seria falso. Acima de tudo, acima de Calia (ou Sombra, não posso me esquecer) ou de sua mãe, vinha a causa. A resistência.

Havia sido um irônico acaso do destino ela ser a pessoa que estávamos atrás. Devo confessar, minha cabeça doeu tentando aceitar que, não só ela estava viva como também era a grande ladra do reino. Fantasma Invejoso, Mão Invisível, Sombra e, em alguns casos mais extremos, deus da justiça. Justamente quem precisávamos. Quem diria.

Precisava fazer com que ela enxergasse pelo que lutamos, o que verdadeiramente queríamos, o que nos era justo de pegar de volta.

Precisava da ajuda dela.

O nome da sombra - Crônicas de sombra e luzOnde as histórias ganham vida. Descobre agora