Bayard

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–Nikolai–

Eu mereci.

Não havia como falar nada além disso –ela estava certa até a última fibra.

A queimação em meu rosto com a marca vermelha de cada centímetro de sua mão poderia nem sequer ser suficiente.

Eu descontei minha frustração na pessoa que menos merecia. Sombra deveria ter tanto em sua mente quanto eu, sabendo que, a cada dia que passa, nos aproximamos de Drítan e de seu destino, roubar segredos de Estado que podem começar uma guerra e provocar sua morte ou, talvez, vir a salvar todas as pessoas que sofriam com a mania do oráculo –mesmo tendo o psicológico forte como sei que ela tem, não há pessoa que não fique nervosa com tal peso.

Mas minha arrogância cega ignorara tudo quando vi a água, apenas água ao meu redor, tão longe de qualquer terra.

Não há muito tempo atrás, antes mesmo de me tornar o auxiliar da Rainha e, com isso, seu assassino, me encontrava em uma missão marítima (mesmo não sendo ideal, já que eu era parte da guarda terrestre, mas era um dos melhores no momento e um dos oficiais de mais confiança de Miranda), tinha que acompanhar uma carga metalúrgica negociada entre Althaia e Forcas. Eram três navios apenas, eu estava no menor, que menos havia carga e mais oficiais, sendo o maior na hierarquia naquela situação também, logo, o melhor alvo quando a tripulação fora capturada por piratas que queriam os metais que transportávamos nas embarcações que conseguiram escapar, torturando-me na expectativa de que eu dissesse onde eles aportariam, quais rotas pegavam, algo que apenas eu poderia responder dos reféns que eles fizeram.

Eu não podia mentir. Se eu dissesse que estavam seguindo um caminho e descobrissem que não era verdade, matariam quem estava comigo, cerca de 50 pessoas.

Também não poderia contar a verdade, uma missão inteira falhada pela minha falta de habilidade de manter a boca calada –meu pai nunca tivera esse problema, honrado até sua morte, então não seria eu quem mancharia o sobrenome Graybane.

Logo, eles começaram a ficar criativos, quebrando os ossos de cada falange dos meus dedos, um por um até que eu conseguisse nos libertar sem recebermos ajuda –são tortos e marcados até hoje, mas pelo menos são funcionais e ainda fortes.

Eles haviam pegado também minha bússola, o último legado que meu pai passara para mim pouco antes de morrer, passado para ele pelo meu avô, os piratas saqueando tudo que poderiam do navio e de seus tripulantes. Obviamente, consegui reavê-la, no entanto, não sem lutar antes.

Não era uma opção para mim retornar sem ela.

Estar novamente no oceano me deixava ansioso, mais ansioso do que gostaria de admitir, provando que não consigo controlar muito dos meus sentimentos.

E, ainda, havia ela, outra lembrança constante que eu não conseguia ter autonomia em meus próprios pensamentos.

Miranda enxergara potencial em mim para que tivesse meu cargo pelo meu autocontrole, minha capacidade de ter todos os ossos da mão quebrados e ainda ficar quieto, nem por um segundo a possibilidade de entregar a localização passando em minha mente.

Se eu não poderia sequer ficar perto de Sombra sem desejá-la, que diabos de autocontrole é esse? Se não posso ficar perto dela sem pensar em outra coisa que não seja seu sorriso, o que me fez ser o que sou?

Que capacidade é essa que me transformou em auxiliar da Rainha e desaparece perto dela?

Tentei conter-me desde a confraternização e tendo uma falha monumental –o efeito fizera exatamente o contrário.

Na tentativa de tirá-la da minha cabeça, era tudo que se passava em minha mente. Todos os meus pensamentos eram que não podia pensar nela, logo, pensando mais ainda.

Eu queria pedir desculpas, queria ajoelhar-me em perdão, queria quebrar todos os meus dedos novamente para poder retirar minhas palavras apenas para que o olhar em seu rosto mudasse, queimando em ódio ao me ver. Queria tudo, menos aquilo.

Contudo, obviamente, ela não suportava nem mesmo me ter em vista.

Não fazia ideia de que minhas palavras a afetariam tanto. Tinha plena noção de que estava sendo grosso, sim, mas não acreditei que ela fosse as internalizar tanto, conhecendo Sombra e tendo plena noção de como poderia facilmente retornar à altura, ou até melhor, qualquer provocação mordaz que eu oferecesse (ou pelo menos achando que a conhecia).

Não sabia que Sombra se importaria com o que eu dissesse sobre ela, que minha opinião tivesse qualquer peso sobre suas reações ou que o que comentara viria a ser um ponto sensível para ela, vendo como a mesma tratou sobre a questão das cicatrizes em suas costas com naturalidade, como se fossem apenas uma informação e não algo que a perturbava.

Claramente, estava errado em todos os sentidos.

Ao aportarmos em Bayard, Sombra fora a primeira a descer com a pequena bolsa que tinha pendendo ao lado de sua calça apenas com o suficiente para dormir na estalagem, caminhando em passos tão acelerados e tão largos que quase corria. Kai havia dito o nome da estalagem que ficaríamos, encontrando-se na frente do porto, onde ela entrara rapidamente e, na mesma velocidade, saíra, passando por nós enquanto ainda carregávamos nossos itens para dentro do local.

–Vou dar uma volta. Não precisam me acompanhar. Estou na merda de uma ilha, não é como se houvesse para onde fugir.

Seu tom era pior que o tapa que me dera, preocupando-me se sequer era possível redimir-me pelo que dissera.

De todo jeito, encontraria alguma forma.

Precisava encontrar.

O nome da sombra - Crônicas de sombra e luzWhere stories live. Discover now