Automático

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Quando fui perceber, já estava com minha roupa de ladra novamente. Meus movimentos eram como água corrente, leves, meu corpo tão consciente de cada ação a ponto de quase nem roçar minha pele contra o tecido colado da blusa.

Precisava ser rápido, estava bem ciente desse fato, o suficiente para que nem percebam minha falta, a ideia da minha presença ainda em suas memórias.

A esse ponto, nem mesmo pensava. Todos os meus movimentos tinham vida própria, gravados em meus músculos, escalar a corda, chegar ao telhado, pendurar-me na frente do escritório de Corbin e passar pela janela, a única diferença sendo os barulhos altas da festança comemorada na cidade, luzes, músicas e pessoas ocupadas com outras pessoas, ninguém olharia para cima.

Parecia algo até idealizado, algo irreal a facilidade com que entrava e pegava os registros que havia visto naquele dia mesmo mais cedo. Não parecia algo sério, algo que tirara meu sono, sanidade e paciência na expectativa durante um mês, um mês de estudo, planejamento e treinamento para apenas isso, um pequeno livro em minha mão, similar aos diversos que existiam na biblioteca do castelo de Miranda.

Como algo tão pequeno e simples poderia significar tanto: vida e morte de tantos cidadãos de Althaia, guerra e paz entre dois reinos –minha vida ou morte.

Minha liberdade.

Eram apenas palavras, parecia incabível possuírem tanto poder, mas sei mais do que bem como poderiam ser perigosas.

E estava tudo em minhas mãos (literalmente).

Apertei-o contra meu peito, querendo que se prendesse a mim sem o risco de ir para outra pessoa.

Era meu por enquanto, cabia a mim seu destino.

Que interessante.

Dirigindo-me à janela a fim de não demorar, como era o esperado, algo me parou à frente da mesa do Rei de Drítan.

Era um livro de capa de couro preta com um desenho de borboleta azul na capa com detalhes em prata. A insígnia dos Galene, lembrando-me que Melissa havia comentado que Corbin tinha os arquivos sem falhas e que daria para Bram comparar com os nossos dados falhados.

Ali, sobre a madeira, tinha o nome verdadeiro e completo da amante de Theron Galene, príncipe regente em vida, pai da, possivelmente, última pessoa sobrevivente de sua linhagem sem ser Asher.

Aquela poderia ser a minha primeira pista a me auxiliar no plano de tirar o falso rei de seu falso trono –Melissa atualizaria de Althaia acerca os registros de tal família, sim, mas eu não poderia arriscar-me a contar com o amanhã incerto.

Estava ao alcance das minhas mãos.

E eu não negaria o que o destino tão alegremente me oferecia.

Peguei os arquivos dos Galenes e os segurei como os registros da mania.

Agora eram meus.

Voltei da mesma forma ao meu quarto, acelerando-me para que fosse vista novamente no baile dançando, rindo e bebendo (ou fingindo estar bebendo para que meus sentidos continuassem claros para a segunda parte do plano dessa noite).

Apressei-me em meu vestido e vi os papéis recém furtados sobre a mesa.

Se havia aprendido algo com homens estúpidos que deixam informações importantes sobre a mesa, tão a vista mesmo em um quarto trancado que poderia ser facilmente invadido por outra pessoa, era que não repetiria tal comportamento.

Não sou um homem estúpido.

Peguei os dois livros e uma adaga, caminhando até meu colchão e abrindo-o bem acima das costuras, de uma forma que nem aparecesse o rasgo e coloquei-os pela abertura, entre molas, algodão e estofado.

Agora estava pronta para voltar ao salão –poderia ler seu conteúdo quando tivesse tempo.

Era como se nada tivesse acontecido.

Kai fizera um excelente serviço durante os minutos que estive, mesmo que, aparentemente, Asher e seu assassino a tira colo não pareciam ir embora tão cedo e acenei com a cabeça à Nikolai, indicando que havia conseguido furtar o que precisava.

Meus sorrisos eram os mesmos, as danças que eu performava eram as mesmas, as taças de champanhe continuava aparecendo em minhas mãos mesmo que eu não tomasse um gole sequer, meus olhos nunca indo para longe do homem alto.

Do assassino da minha mão, me corrijo mentalmente. Ele não é um homem. Era apenas o mesmo monstro que invadira minha casa quando eu tinha sete anos.

Não importa o que eu estivesse fazendo, com quem estava, meu foco não ia para outro lugar, fosse rindo de piadas sem graça da realeza, fosse flertando, fosse do outro lado do salão.

A noite avançava como bolhas em uma taça, o ânimo forte para chegar até o amanhecer, como era de costume ou em Drítan ou em todas as festas diplomáticas, pessoas se cansando e se retirando educadamente para seus aposentos e o baile continuando cheio.

Eu também prestava atenção em quem Asher conversava, quais mãos ele apertava e com quem sorria, ainda que parecesse estúpido, já que os rostos estavam cobertos com máscaras.

Me sentia sob estado de choque, raios passando entre minhas veias, observando cada desenrolar como se fosse apenas uma espectadora até Asher e o assassino fazerem menção de sair pela porta ao invés de hospedarem-se nos quartos do próprio castelo como o restante das cortes.

Eles saíram –e eu encontrei uma desculpa para sair também, alegando cansaço publicamente e que tentaria ainda voltar.

Pela terceira vez no dia, vesti a roupa saturada, meu nervosismo e esforço seco na blusa, encontrando-me empoleirada como um pardal ou corvo ao lado de fora do castelo, corda ao meu lado para descer depois de longas batidas de coração quando os vi na rua, tirando suas máscaras para passarem mais despercebidos pelos outros cidadãos.

Cheguei ao chão em uma das ruas escuras e relativamente vazias, meus pés sobre os ladrilhos por pouco tempo, logo subindo nos telhados das outras construções, indo de um ao outro pulando, um fantasma no meio do seu festival da fartura que ninguém notava.

Daqui de cima, quase me senti em Althaia novamente, segura longe dos outros, distante, sempre me outro mundo, um mundo sem luz e cru.

Um mundo de sombras até que aprendi a fazer amizade com elas, até me tornar uma.

Vi quando finalmente se separaram, observando a estalagem de alta qualidade em que Asher entrava enquanto o assassino adentrava no celeiro do mesmo lugar, sem ninguém além dele no local grande e fechado.

Desci dos telhados e caminhei até a porta fechada, abrindo-a lentamente apenas o suficiente para que eu passasse, segurando-a e levantando-a para que não rangesse, o assassino de costas ainda para mim, girando a chave na fechadura, trancando a única saída do celeiro.

Colocando a chave em um dos meus bolsos, lancei minha corda para uma das vigas superiores, parte da arquitetura dritaniana (e minha parte favorita) e subi antes que ele percebesse alguém além dele no ambiente.

As lanternas que tinham o trabalho de iluminar o lado de dentro ficavam presas sob as vigas em cada uma de suas extremidades, direcionando-me até a mais próxima e, com muito prazer, a assoprei.

Era hora do assassino conhecer as sombras também.

O nome da sombra - Crônicas de sombra e luzΌπου ζουν οι ιστορίες. Ανακάλυψε τώρα