Tudo que viera antes

35 12 2
                                    

–Torryn–

O quarto da estalagem tinha cheiro de madeira úmida.

Estava tirando minha camisa e caminhando em direção à última vela ainda acessa no meu cômodo alugado quando escutara algo vindo da minha janela.

Já alerta, peguei o castiçal mais perto e virei-me, o ferro já no alto, pronto para ser usado em defesa.

–Calma, sou só eu. –E, ali, passando uma perna depois da outra para dentro do cômodo encontrava-se Calia vestida toda de preta, calça e blusa de gola alta sob o manto de mesma cor com tiras de couro sobre seu tronco de uma forma que parecia complicado e organizado. Seu rosto estava um misto de sentimentos, pelo que podia notar sob a parca luz, ansiedade, receio, confusão... medo? –Vim em algum momento ruim? Desculpe, eu pensei que poderia vir até você em qualquer momento, devia ter avisado antes. –Falava enquanto me escrutinava, seu olhar perpassando meu corpo e interpretando, supus, corretamente que já me preparava para dormir e, antes que eu pudesse falar qualquer coisa, virava-se a caminho da janela mais uma vez, na intenção de sair.

–Não vá, por favor. –Apressei-me a fim de alcançá-la, segurando levemente seu braço. –Você entendeu certo. –Abri um sorriso para que o sentimento de intromissão de Calia amenizasse, querendo deixa-la confortável. –Afinal, falei onde estava justamente para você vir me visitar. –Seus olhos recaíram sobre os meus, prendendo-se por um segundo. –Fique à vontade enquanto ou coloco uma camisa.

Ela ainda tinha o semblante parecido com um gato assustado, incerta do que fazer com si mesma nesse lugar, incerta sobre o motivo de aparecer.

–Peço que não entenda como se não a quisesse aqui, o que quero, mas ao que devo pelo prazer da sua companhia? –A perguntara com minha cabeça ainda passando pelo tecido, de maneira que a peguei observando-me distraidamente, quase provocando-me uma risada que contive em sorriso.

–No festival do dia quatorze, você perguntou o que aconteceu comigo, o que eu fizera durante todos esses anos. –O sorriso rapidamente foi drenado da minha face e aproximei-me da cama, sentando no colchão levemente duro, esperando o que estava por vir.

Por isso ela parecia tão nervosa, ela queria me contar sobre o que ninguém sabia.

–Calia, saiba que que não precisa me contar se não se sentir confortável, se não se sentir pronta. –Ela, que até então estava próxima à janela, como presa à possibilidade de um escape rápido, adentrou mais no quarto de madeira pequeno, caminhando ansiosamente sem, definitivamente, ir a algum lugar.

–Eu preciso... –ela parara, viera até ficar à minha frente, segurara minhas mãos e continuara, evitando olhar-me nos olhos. –Eu quero contar. –Levantando seu rosto, notei como era algo que consumia ela, como era uma grande parte da vida dela que ela não conseguia se desfazer. –Guardei o que aconteceu comigo acreditando que eu podia desaparecer por muito tempo, fiquei sozinha por muito tempo e eu não quero mais. Eu quero poder confiar em alguém. Eu quero ter alguém a quem recorrer quando eu não quiser mais. Quando eu simplesmente não quiser mais. –Seus olhos escuros começaram a ficar mais brilhantes sob a luz bruxuleante da vela que não fora apagada, soltando, inesperadamente, um sorriso triste, como se quisesse tirar o peso da situação nem que fosse um pouco. –E acredite, ficar sozinha é bem solitário.

Calia rira de sua piada sem graça e começara a olhar para todo o ambiente, menos para mim.

–Eu posso ser a sua pessoa. Eu quero ser a pessoa a quem você recorre quando você se sente assim. –Apertei um pouco mais sua mão, fazendo com que ela voltasse sua atenção a mim. –Você pode me contar, mas... se me permite, por que agora?

O nome da sombra - Crônicas de sombra e luzOnde as histórias ganham vida. Descobre agora