Fogo e gelo

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–Obrigada por encontrá-la por mim. –Nikolai agradecia ao marinheiro que o entregava sua bússola pelo que, facilmente, poderia ser a terceira vez do dia que ele a perdia de vista.

Aparentemente, era um objeto de muita importância para ele, então não entendia como poderia ser algo que era perdido o tempo todo.

Quando Nikolai não estava organizando rotas e resolvendo problemas que eram levados até ele por ser a pessoa em maior hierarquia no navio, ele se encontrava no convés encarando o horizonte completamente alheio ao seu redor na embarcação, esperando encontrar algo –ou torcendo para não encontrar nada.

Ele não parecia estar tão em controle do que sentia, como era de costume, feição impenetrável. Parecia à beira de se perder em seus próprios pensamentos.

Mesmo em nossa reunião sobre as rotas preferíveis e favoráveis, ele andava de um lado ao outro em sua cabine, escutando enquanto o capitão do navio explicava os prós e contras de cada corrente a ser tomada, um homem perto de seus quarenta, a pele escurecida da vida no mar, as mãos grandes, ásperas e repletas de cortes, com o cabelo castanho escuro na raiz agora quase loiro pelas tantas mechas mais claras adquiridas pela sua exposição ao sol de tantos anos e pelos fios brancos que surgiam ao poucos em seus fios longos, passando do ombro, presos em um rabo de cavalo baixo, suas sugestões recebendo contrapontos de Ophelia e Kai quando passei a observar Nikolai enquanto começava a bater as mãos em seus bolsos, sua agitação aumentando até que as outras discussões pararam, os presentes olhando-o ao bater as mãos sobre sua mesa, sobre seus mapas, respirar fundo na visível tentativa de se controlar e levantou o foco para nós.

–Alguém, por um acaso, está com minha bússola? –Seus olhos percorreram as pessoas ao seu redor e param em mim, acusadores.

–Por que está me olhando? –Sua sugestão era óbvia, inclinando-se para frente na madeira com um sorriso repleto de escárnio.

–Por que será? –Com um sussurro, Kai direcionara o capitão até a saída, tendo plena ciência de que a equipe do navio não poderia saber da minha identidade antes que Nikolai continuasse a me acusar.

–Eu não tenho sua estúpida bússola, qual seria sua utilidade para mim? –Começava a me encontrar me defensiva, ficando ofendida com a sugestão aleatória que surgira pela sua falta de cuidado com seus itens pessoais.

–Não sei, mas isso não é exatamente o que você faz? Rouba coisas apenas por que quer? O que garante que não está pegando minha bússola apenas para me irritar? –Desgraçado arrogante.

–Acha mesmo que eu desperdiçaria meu tempo apenas para provocá-lo? Pelos deuses, você deve mesmo se considerar muito.

–Não tanto quanto você, lhe garanto. É uma ladra, pegar o que não lhe pertence é o que te transformou em Sombra. Por que não a acusaria? –Eu não ouvi mais nada, não me importei com a voz de Kai mandando-o calar a boca ou com Ophelia chamando o nome de Nikolai em tom de advertência.

Suas palavras não foram o que me feriu, fora seu tom, próximo a desprezo aos meus ouvidos.

Eu congelei.

Mentira, eu fervi. Todo o meu sangue me queimava por dentro, eu era feita de fogo e eu queria que ele sentisse, que ele fosse a pessoa coberta de chamas, que ele fosse a pessoa em agonia. Meu corpo tremia, meus músculos se retesaram querendo dar uma reação, meus punhos se cerrando com toda a minha força, minhas unhas cravando em minha pele para que não fossem parar na dele. Com o resto de autocontrole que tinha, olhei ao redor com os meus olhos embaçados com as lágrimas de raiva ameaçando a escapar e vi que me encaravam. Eles também estavam esperando uma resposta minha. Um show.

E eu não faço cenas.

Recuperei minha dignidade, respirei fundo, levantei meu queixo, desferi um olhar de puro ódio, mostrando que, não importasse o quão baixo jogasse, eu continuaria de cabeça erguida, e me retirei.

Me retirei e, no silêncio na minha cabine vazia, finalmente chorei.

Chorei de raiva, soluçando tanto que meu peito doía. Tudo que eu queria era quebrar tudo para que eu não me sentisse quebrando, mas aquilo demonstraria que tinha profundo impacto em mim, e eu não quebro as coisas, eu não faço cenas.

Ficara sentada de costas contra a minha porta, meus sentimentos mais calmos e controlados, movidos pela raiva, ou melhor, pelo ódio, o tempo suficiente que acreditei que a reunião se seguiria, se isso sequer acontecesse e levantei-me, maxilar rígido e punhos ainda cerrados.

Saí da minha cabine e passei direto por Kai e Ophelia, que me perguntavam se eu estava bem. Não me dei oportunidade de responder, tinha um objetivo e meu foco estava exclusivamente na porta do cômodo de Nikolai, irrompendo pela entrada como uma tempestade, encontrando-o sentado em sua mesa de cabeça baixa, levantando seu olhar surpreso com a minha presença repentina.

Em menos deu uma batida de coração, sem dar tempo sequer para que ele absorvesse o que acontecia, desferi um tapa em seu rosto, rápido e ardente, de forma que todos os dedos e a palma inteira de minha mão tocassem sua pele, aumentando a área de contato, querendo deixar a maior parte de sua face com a marca das minhas digitais.

–Você não tem o direito de me julgar pelo que eu sou porque não foi você que precisou se virar sozinho desde os oito anos de idade na rua. Não foi você que dormiu nas sarjetas com o pensamento do que viria a te matar primeiro, se seria a fome ou o frio. Não foi você que precisou começar a roubar antes mesmo de saber como o mundo funcionava para sobreviver. –Ele apenas me escutava com a cabeça ainda virada pelo tapa, a atenção em meu rosto enquanto eu despejava as palavras com minha respiração pesada. –Como você disse, foi isso que me transformou em Sombra e não tenho vergonha alguma do que precisei fazer para chegar viva até aqui. Você tira a vida das pessoas e me julga por ser ladra? Sua hipocrisia me dói. Então, não, você não o direito de me julgar.

Sem me importar em saber se ele teria uma resposta ou não, saí da mesma forma que entrara, furiosa e voltei à minha cabine, porém imensamente mais leve.

Não consigo acreditar que eu já considerei ele algo perto de humano.

Era apenas um assassino que não se importava com os sentimentos dos outros –do que adianta perguntar qual era minha cor favorita se não liga a mínima para empatia? 

O nome da sombra - Crônicas de sombra e luzOnde as histórias ganham vida. Descobre agora