Entre uma coisa e outra

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_Nikolai_

Miranda não havia conversado comigo.

Nem sequer expôs sua vontade para mim. Detestei sentir surpresa quando ela disse que eu trabalharia com a prisioneira –devo começar a pensar nela como Sombra, já que não é mais uma prisioneira, pelo menos não convencionalmente. E ela notou aquilo também, o divertimento em seu olhos quando viu o choque nos meus ferveu o meu sangue.

O que eu sequer havia feito para aquela criatura para que, mesmo depois de já ter me esfaqueado, ainda me odiasse? Ela não tinha a mesma feição de quando estava na feira, enquanto fingindo ser um mercador, disfarçado assim como vários outros companheiros em tendas diferentes. Nosso objetivo era claro: conseguir encontrá-la. Nos fazer da isca perfeita para que ela não resistisse a furtar um dos objetos que tão cuidadosamente escolhemos para que fosse mais atrativo para ela. De um tempo para cá, começamos a montar um inventário do que mais era furtado, dos casos de objetos que mais levavam aos guardas depois de perceber apenas para o final da noite, quando quase não tinham pessoas nas ruas –tecidos, adagas e, o que mais sumia, assessórios. Por acaso, a minha tenda tinha sido uma das premiadas. Não sabia se tinha sido a única vítima, já que, sendo ela, era difícil de saber, contudo, fui o único infiltrado que percebeu. A Rainha estava louca para consegui-la o mais rápido possível, a ponto de dobrar a quantidade de sentinelas em cada rua. E eu consegui.

Não sem antes um machucado. Ela era escorregadia, isso tinha que admitir.

Curvado pela janela naquela noite que continuava um tanto fresca, já que ainda saíamos da primavera, minha barriga reclamava. Miranda e o curandeiro me disseram que não faria mal continuar em repouso por mais alguns dias, entretanto, não podia encarar a perspectiva de me tornar um peso morto, principalmente agora, com a famosa ladra sob o mesmo teto que nós.

Ela estava a exatos dois andares abaixo, seis quartos para a direita. Eu ajudei Miranda nessa decisão. Deixá-la longe da Rainha e na mesma ala do castelo que eu, mesmo que mantendo uma certa distância para a minha segurança, era perfeito para que eu mantivesse um olho nela e fácil contato, mas ela me incomodava. Muito possivelmente porque não sabia do que ela seria capaz.

Em nenhuma das denúncias sobre suas ações ela tinha usado violência. Seu ponto forte foi ser despercebida por tanto tempo, contudo, por algum motivo, ela usara comigo.

Sendo sincero, eu sei o motivo. Ela estava apavorada, vi o desespero em seus olhos quando segurei seu braço. Seu rosto parecia tão desamparado, perdido, jovem que quase a soltei. No entanto, em uma fração de segundo, toda a compaixão se perdeu quando ela enfiava uma lâmina em mim.

Já tive ferimentos de verdade, dores de verdade que me fizeram pensar que seriam minhas últimas e ela havia me causado pouco mais que um arranhão, era evidente sua falta de experiência, e, mesmo assim, aquilo machucara não só minha pele como também meu orgulho. Fui enganado pelo rostinho inocente de uma ladra nada inocente e, pelos olhares que ela continuava me lançando, sentia como se continuava me apunhalando em sua mente. Se a tempestade de seus olhos se materializassem, choveriam espadas –de preferência, sobre mim. Olhei para baixo, a bandagem ainda presa à pele. A desgraçada me dera uma cicatriz de presente.

Contra os protestos de Miranda, decidi continuar ativo também pelas minhas recentes missões. Teria que agir depois de amanhã, decidi olhando para os papéis em minhas mãos, apoiadas no peitoril.

Não, pensei comigo mesmo, foque no agora, no amanhã.

A garota iria colaborar, querendo ou não e, pelo agrado da Rainha, algo pelo qual ainda discutiria sério com ela, eu seria encarregado por ela.

Meu cargo já me consome demais para servir de babá, mas eu sabia que Miranda queria que eu treinasse com ela quando pudesse além de planejar o roubo. Seria muito mais tempo em sua presença do que eu gostaria. Só pelo tempo em que havia me encarado na sala do trono, pensei que meu corpo pegaria fogo. Ela tinha repulsa por mim. Que soubesse que o sentimento era recíproco.

Ela tinha me dado uma facada e ainda me olhava daquele jeito. Uma garota qualquer, uma ladra (ok, uma ladra talentosa) estava desafiando o auxiliar da Rainha, eu sabia que não podia deixar que ela continuasse com essa ideia, que poderia fazer o que quisesse com quem quisesse, principalmente alguém em um cargo bem mais poderoso que o dela.

Precisaria assustá-la, se necessário, ameaçá-la. Infelizmente, enquanto ela for necessária, estava imune, mas eu não me esqueci de sua forma de dizer "prazer em conhecê-lo". Estava na hora de retribuir sua cortesia, pelo menos para colocá-la em seu lugar.

O nome da sombra - Crônicas de sombra e luzWhere stories live. Discover now