Os dias 14

73 13 7
                                    

Os barulhos se intensificavam na cidade, quase podia escutar os gritos das crianças ainda do meu quarto. Se o fluxo entre a capital já aumentava em dia de feira, durante a comemoração do dia 14 era incomparável.

Nesse dia, em nome da memória da salvadora patrona Lia, que chegou nessas terras guiando o primeiro grupo de pessoas em segurança, sempre são feitas comemorações. O primeiro grupo procurava um lugar para viver e prosperar e Lia encontrara isso à quem dependia dela, as mesmas pessoas que, com o tempo, povoaram o reino, Lia de Caliene sendo a primeira reinante –dizia-se que os Galenes eram seus descendentes diretos. Imagina, o jovem rapaz Asher ser da mesma linhagem que a Grande Lia de Caliene, algo passível de piada.

–Querem vê-la hoje. –Cordélia falava enquanto me despia, tirando-me de meus pensamentos, tão baixo que poderia se passar por um leve farfalhar de folhas do lado de fora, entrando pela sacada ainda aberta, o sopro fresco indo contra minha pele nua. Poderia fechá-la, mas não queria.

Não me voltei para olhá-la nos olhos, atrás de mim e passando o restante dos tecidos pela minha cabeça e meus pés, porém girei a cabeça, meu ouvido mais perto do seu rosto, minha boca mais perto de sua audição.

–Torryn falou? –Não podia ver sua expressão, mas senti que ela assentia com a cabeça em resposta à minha pergunta. Minhas pernas entravam na água aquecida enquanto a retornava em seu mesmo tom, percebendo que assuntos pequenos, frases em poucas palavras ela se permitia a deixar escapar sob o teto do castelo, o teto do inimigo, onde as paredes poderia escutar, mas o que escutariam além de uma sentença descontextualizada sussurrada?

–Se quiser, posso acompanhá-la. –Ela me sentava na banheira de cobre com seu carinho indiscutível, mas havia algo entre nós, uma ressalva nova que nos deixava quase hesitantes ao falar qualquer coisa.

Estávamos, em tese, do mesmo lado, mas ela, como espiã, está aqui para observar a corte e, agora, eu fazia parte disso, percebi quando descobrira que fora ela quem contara à Resistência que eu havia sido capturada.

–Adoraria que me levasse. –Afirmei, sentindo suas mãos começando a esfregar minhas costas, quase não tocando em minhas cicatrizes.

Talvez a ignorância entre nós duas nos permitia relaxar mais e agora eu sentia que havia perdido aquela leveza que entrava junto com ela no quarto quando passava pela porta.

E eu estava disposta a tudo para continuar com meus objetivos, no entanto, não queria perder Cordélia ou a relação que tínhamos construído.

Um novo passo de confiança deveria ser feito. Respirei fundo, preenchendo meus pulmões de ar e meu ser de coragem ao sentir seus dedos mais uma vez, distraidamente, traçando as marcas em minhas costas.

–Elas não parecem grandes, não é? Feias, bagunçadas, esbranquiçadas e esmaecidas, sim, porém não muito grandes. Pelo menos não agora, mas, para uma menina de oito anos, elas pareciam enormes. –Não precisei olhá-la para notar que seu dedo congelara próximo à minha pele, impedindo-se de tocar-me. O vento atingiu minhas costas molhadas, fazendo com que meu corpo todo arrepiasse e eu abraçasse meus joelhos na tentativa de proteger-me do frio e manter o calor que a água me proporcionava, tentando não pensar muito sobre as palavras que eu dizia. –Eu sentia que elas faziam a maior parte de mim e que eu era pouco mais que apenas um conjunto de cicatrizes. Só parei de me incomodar quando notei que eu havia crescido, que já era maior que elas e as marcas não passavam de pequenas partes de mim, não o contrário. –Percebendo que o que falava tinha mais impacto em mim do que pensava, notando que nunca havia organizado meus pensamentos sobre o porquê daquilo ter deixado de me atormentar e muito menos exposto em palavras, apoiando minha bochecha sobre meu joelho recolhido ao meu corpo, minha voz saindo notavelmente mais sensível, mais baixa, mais vulnerável. –E eu sou muito maior agora.

O nome da sombra - Crônicas de sombra e luzWhere stories live. Discover now