A área particular

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Se eu não tivesse as mãos firmes de ladra, com certeza elas estariam tremendo agora.

A área particular da realeza, que ficava bem ao fundo da biblioteca, escondida, era onde documentos sobre a construção de Drítan e como ela se baseia, documentos mais particulares, documentos esses que não poderiam estar à mostra para qualquer um que pudesse adentrar na biblioteca. Arquivos sobre uma praga extinguida, talvez.

Todos os toques marcados ainda em minha pele haviam sido apagados pelo senso de emergência que fazia com que meu coração batesse em meu ouvido, escutando meu próprio sangue.

Eu já estava lá dentro depois de ter conseguido abrir a porta com a chave roubada dos guardas que ficavam na frente da construção, analisando quem entrava, responsáveis também por fazerem as rondas sobre o restante da biblioteca e, especialmente, a área particular. O ambiente era escuro como a noite, uma caixa de metal selada com dois pequenos blocos de vidro em cada canto da parede da entrada perto do teto, abafada e quente, porém compreensivelmente lacrada, já que assim, sem ar entrando ou saindo, a contenção de incêndios, quase algum se iniciasse naquela ala, onde estariam as informações mais primordiais de seu reino, seria mais eficaz, Nikolai explicara-me.

Não estava trancada, por mais que a porta pesada desse essa impressão, sabendo que, se fosse sair, precisaria apenas girar a maçaneta, sem precisar sinalizar de qualquer forma barulhenta para que Nikolai, do outro lado, a destrancasse por mim, passando meus olhos na parca luz, apertando meus olhos para que se acostumasse e eu conseguisse ler as identificações dos livros que estavam empilhados em altas estruturas metálicas, tendo a sorte de que Drítan era um dos países que estava dentro do tratado de utilizar a nossa língua, a mais antiga datada, como o padrão para registros importantes, sabendo que Drítan falava tanto caliniano, meu idioma, e dritaniano.

O ar viciado e seco e me incomodava, aquecendo meu corpo mais do que a temperatura do alto do verão sob o sol, umidade logo acumulando-se sob minhas axilas e escorrendo pelas minhas costas, minha roupa preta, sem deixar muito da minhas pele para fora, provocava uma situação ainda mais desagradável mesmo que prática

Eram muitos itens para que eu analisasse, tentando localizar-me por ordem alfabética, o que, felizmente, descobri que era seu método de organização, buscando por todas as letras que poderiam ser compatíveis: "d" de doença, "e" de enfermidade, "h" de histeria, "l" de loucura, "m" de mania", "o" de oráculo" e seguindo nesse caminho até acabarem os cadernos, uma busca vazia e o compasso em meu ouvido ficando mais alto a cada segundo que passava naquele lugar, tão silencioso que parecia rastejar-se em horas cada instante em minha procura.

Passando meus olhos mais uma vez pelos títulos marcados nas lombadas e não vendo nada que me interessasse, já fui dirigindo-me quando escutei a chave sendo passada pela tranca –essa era uma parte de um dos planos reserva que eu não gostaria de testar.

Aquilo significava que alguém se aproximava mais rápido do que me permitia escapar, dando tempo apenas para trancar a porta, deixando tudo como estava para que não desconfiassem de, por exemplo, o ambiente mais importante da biblioteca encontrar-se destrancado –não ajudou em nada minha ansiedade crescente.

A ideia era chegar à biblioteca no momento que uma ronda havia acabado de ser efetuada, as quais ocorriam a cada hora a procura de algo que pudesse vir a danificar os papéis tão necessários, perdendo alguns minutos propositais para que não aparentasse estranho surgir assim que um guarda estivesse retornando ao seu posto, gastando mais um tempo precioso com o bibliotecário e algumas de suas perguntas cadastrais, desperdiçando nossa janela enquanto procurávamos pela área particular, acessível apenas para quem tivesse o selo real para isso, como a família real, obviamente, e os eruditos de Drítan. Porém, nada se compara a nossa irresponsabilidade de esquecer do relógio enquanto trocávamos carícias. Imbecis.

O nome da sombra - Crônicas de sombra e luzWhere stories live. Discover now