09. ENRIQUE

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O APARTAMENTO era bastante amplo para apenas uma pessoa: hall, sala com dois ambientes, cozinha conjugada, lavabo, uma suíte, dois quartos, banheiro, dependência de serviço completa. Sua decoração era uma mistura de senhor decorador, tudo com você, quero me mudar com tudo pronto e de um morador de personalidade forte, que espalhava seus sinais por todos os lados. Havia mantas com padrões tribais sobre o impecável sofá branco. Almofadas neutras ganhavam a companhia de imponentes almofadas-dragão de cores berrantes. Motocicletas se multiplicavam em quadros e enfeites diversos. A cozinha se coloria com galinhas, pinguins e mais dragões, dois deles com roupas de mestre-cuca. Sobre a mesa de jantar, uma grande travessa reunia bolas de basquete, tênis e pingue-pongue. Um tapete muito fofo, verde, levava aos quartos. Só a suíte estava em uso e, mesmo com a manhã de domingo na metade, ainda estava fechada e às escuras. Seu ocupante fora dormir de madrugada, e agora se debatia e murmurava palavras soltas. Acabou por sentar de supetão na cama, suado e ofegante.

Esse ocupante era Enrique, que deu um soco no colchão, protestando:

– Vocês não me deixam em paz nem quando durmo?!

Olhou a hora e desistiu de dormir de novo. Ainda reclamando, tomou um banho e foi ver o que tinha para comer.

– Bom dia. Pesadelo de novo? – A mulher de trinta e tantos anos estava na cozinha, colocando café e torradas na mesa. – Ouvi você falando sozinho.

– É. Não consigo mais dormir sem acordar desse jeito! – Enrique serviu-se de café. – Não vou aguentar muito tempo mais, Donasô!

A assim chamada Donasô era um resquício de outros tempos. Seu nome era Soraia, mas, no orfanato, todas as cuidadoras deviam ser chamadas de dona, e o apelido dela era Sô. Ela era a dona Sô. Ao sair de lá, Enrique a convidara a ser sua mais ou menos governanta; agora ela era sua mais ou menos irmã mais velha e seu apelido era Donasô. Como ela se mostrara uma irmã mais velha muito mandona, agora Enrique morava em um apartamento e ela em outro, sempre próximo. Mas ela cuidava dele em tempo integral.

– Bom, você precisa decidir o que fazer. Não pode continuar desse jeito.

– Como se eu pudesse decidir! Que droga, Donasô, como é que se faz pra não ter ideias?!

Porque a bronca de Enrique era contra seu excesso de ideias. Eram elas que não o deixavam dormir, era com elas que ele falava ao acordar.

Sua paixão sempre tinha sido a Aerodinâmica, e era para estudar e trabalhar com isso que viera para a cidade e para a Escola Superior de Entre Rios. Sua inspiração sobre turbilhonamento e sobreaquecimento de ar em superfícies curvas havia sido perfeita, incrível, fantástica! Depois do caso dos rotores dos helicópteros, Enrique pensou direto em sua ideia sendo usada para melhorar aviões e jatos. A utilidade para o programa espacial era óbvia, mas Enrique nem lembrou disso. Se tivesse lembrado não faria diferença, porque jamais imaginaria que sua inspiração tomasse a proporção que tinha agora!

– O idiota eu esqueceu que o top do top da Escola Superior é o curso de Engenharia de Espaço. – Enrique falou para a sua torrada, respondendo aos seus pensamentos. Donasô já estava acostumada com aquele hábito do rapaz. – Não lembrei que todos os professores da Mecânica são professores de Espaço também! Resultado, eu metido naquele laboratório com todo mundo falando de Engenharia de Espaço o tempo todo! Tudo bem, exploração espacial é genial, mas eu vim por causa da Aerodinâmica! Se eu quisesse respirar Engenharia de Espaço, tinha entrado pro curso de Engenharia de Espaço, ora essa!

– Quando fui ao campus levar sua muda de roupas (Enrique tinha se dado um banho de café com chocolate), ouvi dois homens dizendo que não era uma inspiração, era uma revolução.

Olho do FeiticeiroOnde histórias criam vida. Descubra agora