22. FLUXO DAS COISAS

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O CARRO ERA um estrondo só, com motor envenenado e surdina aberta, e tornou impossível trocar qualquer palavra no estacionamento fechado. O primeiro comentário de Enrique, quando a porta fechou o barulhão insuportável atrás dele, foi sobre pessoas que pensavam que, quanto mais barulho, mais potência tinha um motor. Mais barulho só significava mais barulho e, naquele caso, significava ajuste péssimo também. O cara ia detonar o motor em pouco tempo!

O restaurante era discretamente elegante e eles foram levados até uma mesa de canto, que Sarah escolheu.

– Você entende de motores também?

– Todo mundo que tem moto entende de motores. – Ele sorriu, adiantou-se ao garçom e segurou a cadeira para Sarah sentar. – Mas eu entendo um pouco mais, e o cara está detonando aquele de verdade. Logo vai ficar na rua!

– E você sabe só pelo som?

– É. – Enrique sentou, pegou o cardápio e nem abriu, continuando a falar. – Porque tem qualquer coisa errada no som. No fluxo do som, entende? É o fluxo das coisas que eu entendo, escuto, enxergo. É por isso que eles ficam tão doidos comigo lá no laboratório. Eu simplesmente vejo as coisas que eles precisam mil fórmulas pra calcular. O som daquele carro, por exemplo. O que acontece é que...

Enrique seguiu falando e gesticulando, tentando explicar à Sarah sobre o fluxo errado de energia e combustível que faziam o som, que o cara pretendia que fosse alto e impressionante, ser também o som desajustado de um fluxo com turbilhonamentos conflitantes que...

Parou no meio da frase e sorriu.

– Desculpa. Eu disse que ficava insuportável quando começava a falar disso! Se você não me fizer parar, eu falo a noite inteira sem nem me lembrar de comida!

Um peixe assado com um aroma delicioso passou bem perto da mesa deles e o estômago de Enrique manifestou-se tão alto que Sarah ouviu. Ela riu.

– Acho que seu estômago tem ideias próprias sobre fluxos, principalmente sobre o fluxo do que deve entrar nele! O que acha de a gente pedir um peixe desses sem se preocupar com cardápios, e você continua falando sobre isso?

– De fluxos, turbilhonamentos e tudo o mais? Você quer mesmo ouvir? – admirou-se Enrique. – Sarah, você está libertando um monstro!

Pediram o peixe na versão simplificada de o mesmo que foi pra lá, Sarah fez uma pergunta sobre o tal turbilhonamento indicando que estivera realmente atenta à explicação de Enrique, ele se encantou e desatou a falar. Quando chegou o peixe, que era assado inteiro, Enrique disse que não precisava servir e enxotou o garçom. Entusiasmou-se mostrando a Sarah as soluções aerodinâmicas encontradas pela Natureza que tornavam o peixe tão perfeito para se deslocar na água até que ela, rindo, pegou os talheres e serviu um bom pedaço do peixe no prato dele.

– Está na hora de comer a sabedoria da Natureza, Enrique!

– Eu avisei que você estava libertando um monstro! – assegurou ele, caindo na risada.

Se Enrique não estivesse apaixonado por Sarah, se apaixonaria naquela noite. Aerodinâmica não era a especialidade dela, mas a garota entendia rápido, fazia perguntas inteligentes e comentários divertidos. Mostrou total interesse nos interesses dele, e não houve outro assunto durante o jantar.

No caminho de volta ao campus, ele olhou Sarah absolutamente encantado.

– Você gostaria de conhecer o laboratório, amanhã?

– Tenho aula o dia todo, Enrique. Não sou um gênio dispensado de todas!

– Depois da aula, então. Pode ser? Eu gostaria de mostrar a você! Quer dizer, não é sua área, mas acho que você vai gostar!

Olho do FeiticeiroOnde histórias criam vida. Descubra agora