Capítulo 24: A fobia

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EVA

Quando cheguei em casa, o banho de água fria me esperava na cozinha. Minha mãe estava sentada à mesa, com uma pilha de contas e uma calculadora.

— Você passa tempo demais na casa da sua vó.

Fui até a geladeira e peguei uma garrafa de água. Será que se eu ignorasse a voz da minha mãe, uma hora ela parava de falar?

Não, eu não era esse tipo de filha. Honrar pai e mãe... certo.

— Alguém precisa passar. Ela se sente sozinha.

— Ela tem os amigos da igreja, Eva. E tem os vizinhos. Acho que você deveria ficar mais em casa. E a faculdade? Tem se dedicado?

— Sim.

— Eu acho ótimo. No fim do semestre quero ver suas notas. Teu pai não tá pagando curso caro pra você ficar de moleza.

Ela falava meio de costas para mim, sem se aproximar nem olhar nos meus olhos. Bebi o pouco de água em um gole só e tentei afastar as lágrimas antes que caíssem.

— Eu tô estudando, mãe. Não se preocupe. — E não era mentira. Deus sabia que eu dava meu sangue na faculdade. Só que em vários momentos, levava os materiais para a casa da vovó e estudava lá, durante a tarde.

— E você devia passar menos tempo no banho. Já te falei. A conta desse mês veio um absurdo! E nada de dormir com a luz do corredor acesa. Tá mais do que na hora de você aprender a dormir no escuro.

Arregalei os olhos. O desespero me inundou.

— Não, mãe. É sério. Eu passo menos tempo no banho, não tem problema. Mas por favor, não me faz dormir no escuro. Eu... tenho pesadelos. — E era verdade. Os pesadelos vinham comigo dormindo ou acordada no escuro.

— A gente dorme de olho fechado, Eva. Não faz sentido ficar com luz acesa, você vai ficar no escuro de qualquer jeito.

Engoli em seco. Como explicar que antes de dormir, eu passava um tempo encarando o teto e que precisava ver as coisas ao meu redor? O escuro aflorava minha imaginação no pior sentido possível. O que habitava nele? Monstros? Espíritos? Ladrões! A ideia de não enxergar nada era apavorante! Como eu me defenderia?

— A senhora não pode fazer isso, mãe.

— Não? Você vai pagar a conta de luz? Vai arrumar um emprego pra isso? Além do mais, você não é crente? Que medo todo do escuro é esse, minha filha? Quem tem que ter medo de alguma coisa aqui é satanás. A gente que é crente enfrenta qualquer coisa. Parece que ter mudado pra igreja de sua vó foi o mesmo que nada.

Eu lembrava da pequena discussão que causei, há alguns dias, quando disse que mudaria de igreja. Para minha surpresa, meu pai ficou do meu lado. Já minha mãe, relutou muito. Ela era daquele tipo de gente que achava que só a igreja dela ia pro céu.

Coitada.

No fim, meu pai deu a última palavra. Então, o assunto foi encerrado. Porém, minha mãe nunca perdia a oportunidade de jogar na minha cara que tomei uma decisão ruim. Mas eu estava em paz com Deus e de consciência limpa. Não precisava me preocupar.

Agora, para que me obrigar a dormir no escuro? Isso só podia ser algum tipo de punição.

Eu ofeguei. Larguei a garrafa na pia e fui para meu quarto. Peguei o colar que Manoel me deu e o encarei por alguns segundos, antes de colocá-lo numa gaveta da mesa de cabeceira. Por que aceitei o presente? Não podia fazer isso, estava dando falsas esperanças...

Que pessoa horrível estava me tornando!

Ele é tão gentil comigo. Me fazia sentir tão confortável em sua presença e, no minuto seguinte, me jogava numa montanha russa confusa de emoções. Mas não estava disposta a remoer esses pensamentos. Tinha em mente que tudo o que a gente alimentasse, crescia. Por que eu perderia meu tempo pensando em Manoel? Tinha coisas mais importantes para me preocupar, por exemplo: como eu dormiria essa noite?

Jesus, por favor, me dê uma solução!

Me enfiei embaixo do chuveiro sucumbindo às lágrimas. Por que minha mãe tinha que ser essa pessoa? Não adiantava, por mais que minha avó justificasse suas atitudes com um passado triste, eu não conseguia entendê-la. Não estávamos passando por dificuldades financeiras, essa casa era própria. Foi até meu pai que ajudou a construir, há vários anos. As únicas contas a serem pagas era de luz, internet, água e minha faculdade, que nem era tão cara. Eu tinha 70% de desconto nas mensalidades. Quando comecei o curso, estudava de manhã e a sala era lotada. Foi lá que conheci a Júlia. Um dia, aconteceu de a turma fechar porque vários alunos desistiram da faculdade e sobrou uns quinze alunos. Fomos forçados a mudar para o período noturno e a ficar juntos com outras pessoas. Com isso, a faculdade aumentou os descontos de todos os que foram transferidos para a noite, como uma forma de compensação.

Talvez, eu pudesse resolver as coisas indo para a casa da minha avó hoje a noite. Dormiria lá e pensaria numa solução depois. O pensamento me tranquilizou. Quando me arrumei e saí do quarto, encontrei minha mãe na sala lendo a bíblia. Pigarreei para chamar sua atenção e  informei minha decisão, o rosto cheio de esperança.

— Você não vai. — Sua voz era firme.

Meu semblante caiu.

— Mãe, eu... tenho dezoito anos — murmurei, com cuidado.

Ela quase me fulminou com os olhos.

— E ainda mora sob o meu teto. Enquanto viver aqui, vai me obedecer! Hoje em dia, idade não significa nada! — Ela balançava a cabeça, indignada. — Onde já se viu? Tem dezoito anos e ainda age como uma criança de dez. Um dia ainda vou cortar essas suas idas frequentes pra casa da sua vó, viu? Toda vez que vai pra lá, volta pior. Aquela mulher não para de te mimar!

Um nó se formou na minha garganta. Não podia falar nada que tudo era jogado na minha cara. Era até melhor ficar quieta antes que minha mãe me proibisse de ver a vovó todo dia. Isso eu não poderia suportar.

— Tá bom. Eu vou pra faculdade. — Era melhor do que ficar ouvindo sermão a troco de nada. Isso porque eu era uma boa filha, imagine se fosse uma rebelde...

Mas infelizmente, alguns pais nunca ficavam satisfeitos com os filhos.

Saí de casa cabisbaixa e, ao mesmo tempo, aliviada por passar um tempo longe da minha mãe. Odiava quando ela estava de folga do trabalho. Eu era seu depósito favorito de reclamações, principalmente nesses dias.

Quando entrei no ônibus, peguei um lugar na janela e novas lágrimas se formaram nos meus olhos diante da pergunta que não queria calar: como eu vou dormir mais tarde?

Entre o amor e a maçã | Livro 1 [CONCLUÍDO]Where stories live. Discover now