Capítulo 57: O velório

30 9 0
                                    

EVA

Depois da longa conversa que tive com meu pai, passamos o dia na sala, vendo alguns dos meus filmes idiotas de comédia romântica. Tive que explicar várias vezes porque eles eram bons. Em alguns momentos, eu ri porque ele disse algo como “isso aí acontece só em filme mesmo”. Mas só pelo fato de ele estar ali, fazendo um programa que eu gostava, já fiquei mais aliviada. 

Manoel me mandou mensagem algumas vezes pra saber como estavam as coisas e eu relatei tudo sobre a conversa que tive com meu pai. Ele ficou feliz em saber que começamos a nos entender. 

Mais tarde, meus pais e eu fomos até o cemitério onde o corpo da vovó seria velado. Cruzamos com amigos e conhecidos pelo caminho. Eles nos abraçavam e prestavam condolências. 

Entrei na capela de mãos dadas com meu pai, como forma de nos apoiarmos. Eu estava tentando ser forte. Havia tanta gente por lá que não cabia na salinha. Pessoas da igreja, da rua da vovó, amigos de vários anos e até gente que nunca vi antes. Todas as amizades que vozinha fez ao longo de sua vida.

Como ela era querida por todos

Eu já tinha parado de chorar, até o momento em que me aproximei do caixão da vovó. Meu mundo desabou outra vez, o chão sumiu debaixo dos meus pés.

Meu pai e minha mãe não se aproximaram, só sentaram numas cadeiras ali perto. Olhei para eles e vi quando ela apertou os braços do meu pai gentilmente enquanto ele enterrava a cabeça nas mãos. 

Acho que essa foi a única demonstração de afeto que já vi entre eles. Saber que por baixo de tantas camadas de pedra e gelo ainda havia amor me deu esperanças. Eles nunca se divorciaram porque se amavam. Não tinha nada a ver com manter as aparências. 

No minuto seguinte, voltei os olhos para o rosto da vovó e desejei que acordasse. Seus lábios estavam levemente erguidos, como se sorrisse. Tive certeza que ela morreu em paz. 

As palavras de Jesus se cravaram na minha mente:  Hoje mesmo estarás comigo no paraíso.

A senhora foi para casa, vozinha. A senhora está em casa, num lugar bem melhor que eu, cercada de amor, sem sofrimento algum. A senhora nunca mais vai reclamar das suas dores, porque elas não existem mais. 

Toquei suas mãos por cima do pano fino e transparente que a cobria. Tudo em mim ainda doía e eu escorei a cabeça em suas mãos, lembrando de todas as vezes que ela acariciou meu cabelo e me confortou, ou quando me fazia tranças pra eu ir pra escola. 

Fechei os olhos por um segundo e as lágrimas caíram sem parar, como chuva sobre o caixão aberto. Me despedacei inteira e questionei a Deus sobre como teria forças para passar por isso. 

— De todas as vezes que meu coração se partiu, essa foi a que mais doeu — sussurrei. — Não sei se vou te perdoar por isso, por me deixar!

Continuei ali por um tempo, derramando minha alma, até que uma mão em meu ombro me fez abrir os olhos e levantar a cabeça. Endireitei o corpo e me virei. Manoel estava atrás de mim, com uma mão no bolso da calça. Sua mãe e irmã estavam paradas logo atrás, com um carrinho de bebê, onde a pequena Alícia dormia. 

Sem pensar, avancei sobre Manoel e me atirei em seus braços, chorando ainda mais. Ele não hesitou em retribuir meu abraço, me apertando com força. Alguns segundos depois, senti uns dedos me puxando e me afastei dele. Minha mãe segurou meus ombros com firmeza e sussurrou no meu ouvido: 

— Eva, não pode fazer isso. Tem muita gente conhecida aqui, vão ficar falando depois.

Fiz uma careta e me desvencilhei dela. 

— Agora pronto! Será que não tenho o direito nem de sofrer pela morte da minha vozinha? — quase gritei. — Por que não me deixa sofrer em paz?

Bufando, saí correndo de lá, sem acreditar que mesmo com todo o sofrimento minha mãe ainda pensava no que o povo ia pensar. Nada mais importava para mim. E daí que eu abracei o Manoel daquele jeito? Quem ia ficar fofocando logo no velório da vovó? Ai, pelo amor de Deus, seria muita falta de respeito...

Muitas pessoas também já me abraçaram para prestar condolências. Por que Manoel não podia fazer o mesmo? Minha mãe era louca, não é possível… 

Corri até os fundos da capela, passei pelas portas duplas e me joguei num banco de pedra, no jardim. O vento brincava com meus cabelos e me encolhi um pouco no casaco preto que vestia. 

Ouvi passos atrás de mim. 

— Eva — Manoel me chamou, sentando ao meu lado. — Não devia falar assim com sua mãe, querida. Ela não fez por mal. 

— Mas eu tô cansada. Nunca me deixam fazer nada. Só quero viver minha vida. 

— Você vai, só precisa ser paciente.

Uma nova lágrima caiu do meu olho e eu nem me importei em limpá-la. 

— Tudo em mim dói, Manoel. O que eu faço para a dor parar?

— Nada. Você precisa senti-la por um tempo, até que ela já não esteja presente. Mas… eu posso orar por você. E pela sua família. 

Apertei os lábios e o encarei. Seus olhos eram os mais amorosos e amáveis do mundo. Lembrei de quando tivemos uma conversa parecida quando o pai dele foi embora. 

— Faria isso por mim?

— Faria qualquer coisa por você, Eva. — Ele puxou minha mão e deu um beijo nela. — Vamos orar. — Virou-se para mim no banco e fechou os olhos, ainda segurando minha mão. Também me virei para ele e fiquei olhando para o seu rosto pálido.  

— Manoel. 

Ele abriu os olhos e me encarou. 

— Sim?

— Eu te amo.

Seus olhos se acenderam como duas lanternas em meio à escuridão e ele ergueu um pouco as sobrancelhas, provavelmente, surpreso. 

Depois, piscou. 

— Com que tipo de amor você me ama? 

Ah, ótimo. Ferrou. Não quero ter que responder isso. Ele errou no roteiro. Devia ter dito algo como “não sei o que dizer”. Que droga, Manoel. Não estamos numa boa hora pra falar disso. 

— Não quero falar disso agora. Mas eu queria que você soubesse.

Ele pressionou um pouco minha mão, apertou os lábios num sorriso fraco e se endireitou no banco, olhando para o restante do jardim, para um ponto onde provavelmente os corpos estavam enterrados.

— Tá bom. 

Eu me aproximei mais dele e escorei a cabeça em seu ombro. Depois, disse que já podia orar. 

E ele orou.

Entre o amor e a maçã | Livro 1 [CONCLUÍDO]Where stories live. Discover now