MAVERICK VERMELHO

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Até os dezoito anos, meu nome era Piper. Não vou fazer muita enrolação aqui. As pessoas que me conhecem, família e parceiros de banda, irão dizer para você que eu sou uma pessoa legal, confiável, mesmo que um pouco grossa às vezes. Deve ser coisa do sangue.

Sabe aquela coisa de "princesinha", "Rainha do Baile", essas merdas? Sempre passei longe. Não pense que é aquela história de "se eu nunca vou ser aceita, vou fingir que não quero", é o maior erro que as pessoas pensam sobre mim.


Não vim de uma família partida, nem de uma que estava partida por dentro; às vezes acho que me quebrei sozinha

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Não vim de uma família partida, nem de uma que estava partida por dentro; às vezes acho que me quebrei sozinha. Para o desespero da minha mãe, e a diversão do meu pai. Mas eis uma teoria: Eles eram a definição de família normal, mas eu vejo como a família hipócrita, como a maioria costuma ser, pelo menos nos subúrbios: veja bem, nós, as crianças dos anos 70 e jovens dos anos 80 éramos filhos dos anos 60. A maioria das mães da nossa geração estavam divididas pela Revolução Sexual: algumas, eram "almas livres" e quando engravidaram, não queriam abraçar os valores antigos do patriarcado, e criaram crianças soltas, algumas perdidas e mais ainda, abandonadas. Outras, como a minha mãe, resistiram com garras e dentes à essa Revolução e mantinham os valores familiares de uma classe média decadente que ainda acreditava no "sonho americano". Este último caso, era a minha mãe. Em algum momento ela deve ter experimentado a liberdade e se casou com um bluesman, mas assim que eu nasci, algo mudou. E desde então, se tornou uma carola ultra conservadora. E por algu motivo, cresci com aversão à tais valores.

O que reza a lenda é que a dona Teresa sempre quis uma menina, já o Sr. Albert era mais do tipo que adoraria ter um menino para ensinar a tocar guitarra, levar para bares e coisas assim. E então, a dona Teresa engravidou, e aqui estou eu: determinada a trazer alegria para ambos. Mamãe esperava que eu fosse carinhosa, adorasse bonecas e vestidinhos cor de rosa. Mas meu pai investiu pesado que teria um "menino", e colocava seus discos dos Rolling Stones aos domingos de manhã, cantava "Blackbird" para eu dormir e aos 12 anos, me deu a primeira guitarra.

Infelizmente, todo filho ou filha eventualmente traz o desgosto para os pais. A minha mãe já era conformada que a menininha dela não era tão menininha assim, mas meu pai...ele via a filha tocando guitarra e humilhando os rapazes do Clube do Bolinha que é o rock and roll. Mas um dia, assistimos "O Rei do Ritmo" do baterista Gene Krupa, e foi nesse instante que eu soube que queria ser baterista. A justificativa que dei era: "Guitarristas são "Rainhas do Baile" do rock'n roll, não quero essa merda". Meu pai riu. Com o pouco que ele fazia na fábrica da Ford, juntou alguns trocados todos os meses e no Natal, o Papai Albert (já que o Papai Noel nunca recebeu mérito em nossa família) me deu uma bateria completa. Para o desgosto dele, a filha dele seria baterista. E para o desespero da vizinhança, também.

Eles sempre iam para a cozinha, ou para o jardim para brigar. Não sei por que diabos eles achavam que faria alguma diferença, o roteiro era sempre o mesmo: minha mãe chamava meu pai de irresponsável, imbecil e perguntava "o que você tem na cabeça? Você é PAI, não é um dos colegas de escola dela!". E ele estendia as mãos na frente do peito com as palmas para baixo fazendo "shhh!shhh!" pedindo para ela se acalmar. Eu sempre pensei que ela era chata, paranóica, neurótica, e me perguntava o que ela fazia com meu pai. Com certeza, algum dia deve ter virado a cabeça dela, mas mesmo assim, eu achava ela certinha e quadrada demais para ele.

Só entendi o que ela dizia muitos anos depois, repensando dois eventos: um, foi quando meu pai me levou com ele para o bar onde ele tocava com os velhos amigos dele. Ele se justificou para a minha mãe dizendo que era melhor que eu começasse debaixo da supervisão dele do que com qualquer moleque na rua. Mandou bem, pai. Só devia ter pensado melhor nas amizades, porque numa dessas bebedeiras com os amigos dele que perdi a virgindade, completamente bêbada de Manhattan no banheiro com um desses "velhos amigos" dele, e tudo que bastou foi elogiar meus olhos azuis e o cabelo preto "como uma ovelha negra". Na época entendi como elogio, e veja só onde o elogio me levou...Não é ruim o suficiente?

Aos 15 anos, eu já tinha bebido de tudo, com ou sem pai. Sumia por dias, era eu sair de casa com meu case de pratos e baquetas, que eles já sabiam que eu demoraria pelo menos três noites para voltar. Até que uma noite dessas, meu pai quis ver a "menininha dele arrasando". Para encurtar bem essa história, a noite acabou quando meu pai me trazia de volta para casa depois do show dizendo "pauleira demais para o meu gosto", entrou na faixa oposta da rodovia e numa tentativa lenta demais de desviar do carro que vinha na direção oposta, fez nosso carro capotar duas vezes. Se ele não tivesse morrido bem ali, teria morrido na cadeia, pacote completo: dirigir sob influência de álcool, colocar a vida de menor em risco, álcool para menores é proibido, então com certeza ele estaria em sérios apuros. E isso, só pensando no nosso carro. Homicídio culposo não estaria fora da lista de contravenções. Mandou bem, paps. Eu disse naquela noite que podia dirigir, mas...

Nessa mesma época conheci o glam. E era a pólvora que faltava para explodir a fogueira já acesa.

Juntei gorjetas durante 3 anos e consegui um Maverick vermelho igual ao do acidente,quando meu pai morreu. Vermelho vinho, com a capota preta. Se não fosse a placa, podia dizer que era o mesmo, e combina com a cicatriz na diagonal na minha testa, um pequeno souvenir que herdei desse acidente.

 Se não fosse a placa, podia dizer que era o mesmo, e combina com a cicatriz na diagonal na minha testa, um pequeno souvenir que herdei desse acidente

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E por causa do meu Maverick, esqueceram meu nome. Desde então, sou Mavie. Meu nome real, devo ter lembrado algumas vezes, mas raríssimas vezes alguém além da minha mãe o usou.

E foi quando fundei a minha quinta banda que as coisas começaram a acontecer. Dormi com muitos caras, fiquei acordada a noite inteira com outros. O Razzle parecia um cara legal. Já tinha visto ele nos bares, cantava bem, tinha cabelos loiros e compridos. Magrelo e uns centímetros a menos que eu, mas quem se importa? Eu quebrei algumas regras por ele, e juro por Deus, que foi a maior cagada que eu fiz na vida. Mas não é sobre isso que vou contar. É sobre o que aconteceu depois. Se foi bom ou não, eu desisti de escolher há muito tempo.

Vocês que sabem. Quanto à fonte dos meus problemas, a Cherry cantava por mim essa:

É tão dolorido, meu deus, como sou fraca.
Eu não amo você, só te queria debaixo dos meus lençóis
E quando tiver acabado, apenas se levante e diga adeus
Nos vemos por aí, dia desses...quem sabe...

Mas é lógico que não foi assim que aconteceu, ou não teria o que contar

STARRY EYESWhere stories live. Discover now