AA - ABSTINENCIA E ANSIEDADE

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"Primeiro Dia

Não vou conseguir escrever muito. Só estou preocupada, com medo.

Na verdade, eu estou me cagando de medo. Essa merda vai doer pra caralho até sair do organismo. Mas é aquele tipo de situação: doer ou morrer.

E até onde me lembro, dói a ponto de desejar a morte. Por misericórdia, mesmo.

Por enquanto, nem sequer um comprimido de metadona que seja. Depois do check-in, mostraram meu quarto, a Vanity deixou algumas coisas com a enfermagem (ela sempre revistam tudo que trazem para os viciad...internos). Pedi para ela alguma coisa em que eu pudesse escrever, mas ela teve que ir comprar canetas hidrográficas, daquelas com ponta de feltro. Tinta à base de água para ninguém surtar e engolir tinta de caneta. Inacreditável... Nada de lápis ou canetas que tenham ponta, para evitar suicídios. Onde tem algo proibido, tem uma história, não é?

Ainda não estou sentindo nada. Como um lago cristalino numa manhã de verão. É a calmaria que antecede a tormenta.

Isso vai doer. Eu sei que vai. Mas só posso...esperar. Nem sequer torcer para que não seja tão ruim compensa, porque VAI sim. Vai ser horrível. Vai ser como a morte. Pior que a morte até.

A gente sabe desde a primeira vez que falam sobre a heroína, sem nem experimentar ainda, que é essa merda toda pra sair depois. Talvez seja por isso que hesitamos tanto em parar, medo da dor.

Mesmo assim...eu nunca senti medo de dor. Me lembrando agora de algumas vezes: presa, processada, denunciada por lesão corporal. Alguns socos também. Depois da primeira vez que levei um soco, perdi o medo da dor. Ainda hoje me lembro do gosto de sangue na boca e de pensar 'É só isso? Era dessa dor que eu estava com medo?". Sempre me orgulhei um pouco de mim mesma. Às vezes até procurei sentir alguma dor; talvez porque não sentia nada.

Ou será que era outro tipo de dor, do tipo que não dói no corpo que eu estava tentando evitar? Espero que não...sempre me considerei bem mais forte que a maioria. Não conheço muita gente que passaria por tudo que passei com a cabeça erguida.

Até mesmo aquele soco que me trouxe aqui, tenho que confessar: era o meu orgulho que doía, não foi a primeira nem a última vez que vi outras mulheres na casa do Sparky. Muito menos a primeira vez que brigamos a esse ponto.

Mas eu precisava sentir alguma coisa. Precisava de dor. Agora...bem...só de imaginar a dor que me aguarda (ou melhor, que eu estou aguardando, sei que ela está vindo), meu estômago congela e sinto choques nos meus nervos, como se estivesse caindo, caindo do topo de um prédio, caindo mas nunca chegando ao chão.

Pior, encontrando várias vezes o chão e acordando em pânico.

Nada que eu não mereça.

Mas preciso fazer isso.

Me deseje sorte."

"Terceiro dia

Ontem não escrevi porque estava doendo demais. Finalmente me deram metadona, mas não o suficiente. Aos poucos está começando de novo: a sensação é como se ossos estivessem sendo quebrados lentamente. Ainda estou suando litros, mesmo que esteja morrendo de frio. Pelo menos parei de espirrar, mal dava tempo de respirar e espirrava de novo e de novo. A coceira por todo o corpo é insuportável: como uma reação alérgica violenta, como formigas andando debaixo da pele. Como consegui me coçar (a vontade era abrir um rasgo na pele e tentar coçar por dentro) mesmo com a dor igualmente espalhada? não tenho ideia. Tenho certeza que haviam sombras aqui, sombras com olhos furiosos e dentes afiados. Elas riam de mim, cheias de certeza que logo me levariam embora. Juro que não estou mentindo, eu vi todas elas, como espíritos de condenados cheios de ressentimento ansiosos para sugar a escuridão que eu chamava de alma. Não tenho mais isso. Não tenho mais veias, nem alma, amor, mais nada. É um vazio cheio de ódio, um silêncio gritando dentro de mim. E uma apatia aterrorizante.

STARRY EYESWhere stories live. Discover now