REUNIÃO

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- E então, você vai ficar aqui? - tinha acabado de pedir pra a Cherry ficar na minha casa. Não me importava, ela podia fazer o que quisesse lá. Acho que desde quando ele comprou aquela mansão, nunca teve tanta gente reunida, e todos sóbrios. Parecia uma forma estranha de reestréia.

Eu cheguei da clínica com a cabeça latejando e a garganta ardia. Fiquei ali, parada como uma múmia na cozinha da casa dele até conseguir formar pelo menos uma linha de raciocínio coerente na cabeça, liguei para todos que eu pude lembrar com a intenção dupla: eles precisavam saber o que estava acontecendo, e eu não estava lidando bem com aquela casa enorme totalmente vazia. Com alguns amigos, estava um pouco menos, não totalmente.

- Por que você não volta para a sua casa, e deixa o seu telefone para...

- Podia ter deixado o meu telefone também, Mav...não é justo você segurar essa barra toda sozinha.

- Não é nenhuma barra, e eu não ficaria tranquila em casa, Tony. Aqui, eu estou perto da clínica, até se ele fugir de lá ou coisa assim, eu consigo encontrar ele.

- E como exatamente você conseguiu convencer ele? - O Doc estava com um olhar sério, e eu não culpo ele por não acreditar tanto, nem o Phil...mesmo que esse último se limitasse a ouvir tudo e quieto para que eu não contasse o tamanho da mentira que foi ele dizer que estava de olho no Sparky.

- Esses dias todos, eu fiquei aqui, Doc. - Estava falando com o Doc, mas o olhar fixo no Phil, mesmo que ele evitasse olhar pra mim. - Eu limpei ele, ajudei a segurar a onda da abstinência, dei comida, lavei e troquei lençóis, limpei vômito e merda mais vezes que a mãe de seis crianças em toda uma vida.

O Razzle também não acreditava muito.

- Ele vai fugir mesmo, talvez ele esteja dando um jeito de escapar dali enquanto estamos conversando aqui. Mas... por outro lado, ela tem razão: alguém precisa estar por perto. - olhou ao redor, estávamos todos em pé ao redor da bancada da cozinha com um tampo de mármore que eu pensei que precisaria contratar um caminhão de lixo para tirar toda a imundície de cima alguns dias antes. Todos estavam em silêncio. - De qualquer forma, acho melhor a Mavie. Se ela quiser arrebentar o traseiro dele, pelo menos ele não revida.

A tentativa de um alívio cômico deu certo.

- Não foi tão fácil, gente. Eu estava aqui todos os dias, tudo isso que eu contei agora, e todo dia eu tentava fazer ele perceber que estava sóbrio. No começo ele me pedia cocaína quase todo dia.

- E você dizia que não e ele surtava...idiota de merda... - Quanto mais o Jack parecia puto da vida, mais eu sabia que ele era o que estava mais preocupado com ele entre todos.

- Não...eu dava uma carreira pra ele, ele dormia e só pedia de novo no dia seguinte. - Olhei ao redor e encontrei o que eu estava planejando mesmo: olhares confusos e cabeças inclinadas se perguntando se eu também tinha enlouquecido. - Paquipax. Receita da Vanity...

- Que porra é essa?

- É um sonífero que eu dei para a Mave quando...quando o Spark morreu. Derruba até um paquiderme...

- Eu amassava bem e deixava por perto; cada vez que ele pedia, eu fazia uma carreira de Paquipax e dava pra ele dormir.

Mais um alívio cômico, um pouco de risada se espalhou entre todos ali. O Jack apertou a minha mão e me chamou de "gênio...mesmo que tardio".

- E então, cada dia foi uma luta...pelo menos ele dormia e não sentia tanto os efeitos da abstinência. Enquanto isso, fui tentando colocar esse lugar em ordem.

- E a faxineira?

- Para ela ter um surto? Faziam meses que ela não vinha a pedido do Sparky. E não confio em uma novata para ver como esse lugar estava. Quer uma ideia? - abri a gaveta de talheres e apontei para as divisórias. - Podem olhar. Percebem? Todos os talheres de prata, exceto as colheres. Precisei me livrar de todas, porque estavam destruídas de heroína. Não tinha uma que pudesse ser salva, e eu não queria arriscar comer alguma coisa mesmo com todo o detergente do mundo nessas colheres. Era esse o ponto que chegaram as coisas.

Por que todos estavam de cabeça baixa?

- Pessoal, é inútil isso. Todo mundo aqui tentou de uma forma ou de outra, e todos em algum momento levou um coice dele. Ele afastou todos nós várias vezes. Todos, inclusive eu.

- É verdade, por que você sumiu? De repente... - o Tony era o que tinha sentido mais que todos, porque eu me dava muito bem com ele.

- Ele...fez a mesma coisa que com todos vocês. Deu todos os tipos de patadas até que me senti idiota de voltar aqui só para passar raiva, foi isso.

Ninguém estava acreditando que era "só" isso, mas era o máximo que eu podia dizer naquela hora.

- À medida que ele estava ficando menos fissurado e mais calmo, comecei a sugerir. Acabei brigando feio algumas vezes, porque ele é ele mesmo, com ou sem drogas. Quase coloquei tudo a perder algumas vezes, mas...

- Você não podia ficar para sempre fechada aqui como babá dele, Mave, a gente entende...

- E não ia adiantar nada. Em algum momento ele ia ter que sair da toca, e tudo ia começar de novo. - O Razzle terminou o raciocínio.

- E então, foi isso. Chegamos a um meio-termo, hoje pela manhã fiz ele tomar um banho, e fomos para a clínica. É uma clínica boa, eu fiquei nela. Não é só aquela baboseira de doze passos, medalhinhas, e tal. Não tem a obrigatoriedade de rezar, nem nada assim.

- Minha nossa, onde é isso? Talvez eu precise de algo assim também!

- É um programa com um templo budista, Raz...duvido que você consiga suportar! - a Cherry finalmente abriu a boca.

- Isso foi fácil. É da mesma linhagem que o David Bowie queria ser monge. A ideia era apenas ir conhecer, mas ele acabou resolvendo ficar e tentar por uns dias.

- O Sparky meditando...essa eu quero ver... - o Jack estava acendendo um cigarro.

- Por quê?

- Ele é agitado demais para meditar. Muito inquieto.

- Ué, mas é justamente para essas pessoas que a meditação serve, não é? Se ele fosse calmo e sereno ia meditar pra quê?

Aquela conversa estava ficando sem graça e eu tinha muito mais para conversar do que debater benefícios da meditação. Isso era com ele, não com a gente.

- De qualquer forma, ele pode resolver fugir, pode precisar conversar, pode ter algum encontro com a família...

- E ele vai querer chamar a mãe? Tem mesa branca na clínica?

- Brincadeira besta...mas ele ainda tem alguma família. Talvez a irmã. O avô dele, com certeza. Pode acontecer, o avô dele pode querer visitá-lo...mesmo que ele não queira, ele não consegue se obrigar a recusar uma visita do Tom. E então, ele pode ficar aqui. Agora tem uma casa de verdade para ele ficar.

Todos estavam em silêncio de novo, e um clima deprimido começava a se espalhar entre todos.

- Pessoal, qual é...ele está bem, vai começar a se recuperar, e se não der certo, tentamos de novo depois. Mas não vamos ficar com essa cara de velório, porra...

- Não é um velório, mas passamos perto... - o Jack falou baixo e claro o suficiente para ouvirmos.

- Você vai ficar bem aqui, Mavs? Tem certeza? - a Vanity estava olhando ao redor. - Eu posso ficar um tempo com você se precisar.

- Está tudo bem, são apenas alguns meses. Aos poucos ele vai voltar. Essa é a parte que me preocupa. Primeiro passa um dia, para almoçar, depois de um tempo, pode dormir de um dia pro outro, depois três dias, uma semana...até considerarem que ele pode voltar. Vocês conseguem imaginar o Sparky recebendo ordens? Pessoas dizendo quando ele pode entrar na própria casa?

- Não vai ser fácil...

STARRY EYESWhere stories live. Discover now