AINDA DEZEMBRO

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O Natal era sempre uma época triste para ele. E aquele não foi muito diferente, mas ele estava "manso". A tristeza segurava um pouco os outros impulsos dele, e naquele Natal, passamos no meu apartamento em Hidden Hills. Ele queria que eu morasse com ele em Van Nuys, mas era um lugar grande demais! Quando passava muito tempo lá, o mapa mental se limitava ao quarto dele, banheiro, sala e cozinha. Tinha a piscina também, mas com tantas drogas a gente esquecia muitas vezes dela. Estava acostumada com apartamentos pequenos, quartos de hotel e a casa em que cresci que também era uma casinha de subúrbio simples com dois quartos e uma sala. Aquela conversa sobre as nossas ambições, lembra?

Uma vez eu estava chapada e quase me perdi, era uma mansão a la Tony Montana, e não me sentia bem perambulando por lá. Então, era isso: eu "recortava" mentalmente uma parte da casa e estava perfeito. Mas quando o Natal se aproximava, eu percebia que a inquietação do aniversário virava uma apatia triste. Ele começava a lembrar do passado e a auto-piedade tomava conta. E voltava no tempo, voltava a ser um garoto abandonado pelo pai e ignorado pela mãe. Naquela época, pelo menos ele tinha os avós. Eu mesma liguei para eles e dei o número da minha casa; eles podiam ligar para ele quando quisessem, mas aquela casa era grande demais, grande o suficiente para refletir o vazio que ele estava sentindo.

A minha mãe queria vir passar o Natal comigo, ela estava casada de novo com um marido mais ao seu gosto. O Larry era um cara convencional, sem graça, sem nada que eu pudesse admirar ou pelo menos odiar. Tenho certeza que a indiferença era recíproca durante todos esses anos.
Apesar da insistência da Theresa em passar aquele Natal comigo, expliquei mais do que devia: que eu namorava um cara problemático que provavelmente se sentiria um lixo vendo uma família unida, mesmo que só nas aparências. Custou um pouco de tempo, um pouco mais de comparações, julgamentos e ofensas ate ela ceder. Particularmente acho que no fundo ela gostava disso; ela tinha mais argumentos para apontar o dedo na minha cara e fazer eu me sentir novamente um fracasso. Mesmo que apenas enquanto aquela conversa durasse.
Assim, estávamos só eu e ele no Natal, ouvindo os carros que passavam lá embaixo, enquanto bebíamos fazendo versões de merda de todas as canções natalinas que lembramos. Foi o pior eggnog que bebi na minha vida, por mais que o Sparky insistisse que ninguém faz um eggnog como ele.

Bem, eu até concordo, mas não no mesmo sentido. Realmente ninguém faz um eggnog como o dele.

E concordamos que não levaríamos heroína para casa. Tínhamos no máximo um pouco de zombie dust e nenhuma agulha. Era cheirar, ou ficar sóbrio. Cheiramos, bebemos, tocamos violão e destruímos toda a tradição natalina. Era quase uma vida normal.

Eu preferia que ele ficasse até o Ano novo, mas no dia 29 ele esperou eu sair para comprar mais bebidas e se mandou. Eu meio que já esperava que ele fizesse isso porque durante toda aquela noite ele não dormiu nada e eu sei que ele revirou todos os cantos possíveis no meu apartamento á procura de agulhas. Mas eu realmente não tinha nenhuma.

Ele exagerou tanto quando chegou em casa que, no dia 31 eu liguei para ele à tarde e perguntei se ele queria que eu fosse lá passar o ano Novo com ele e a resposta foi:

— Sei lá, talvez...que dia vai ser?

Eu respirei fundo, fechei os olhos e contei até 10.

— Tudo bem. Entendi. Daqui a pouco estou aí.

O que eu estava pensando? Eu também estava nessa onda, mas não como o Sparky. Se antes quando ele precisava de um baque antes de dormir para cortar o efeito do pó, ou assim que acordasse já estava com uma garrafa de Jack Daniel's e um papelote novo me preocupava, agora eu ficava cada vez mais apavorada vendo que aquele lugar sinistro pra caralho que eu entrava e saía era um lar, doce lar para ele. E era uma merda.

Às vezes eu tentava convencê-lo a dar um tempo. Aquela conversa do tipo "vamos dar um tempo, o organismo está acostumando e cada vez precisamos de mais e mais...talvez se a gente parar por uns dois dias?". Eu sempre tentava fazer ele continuar sóbrio depois de dois ou três dias, mas nunca dava certo. No começo, ficava calmo por uns dias. No segundo dia, já olhava para todos os lados, coçando os braços. No terceiro dia já estava naquel estado volátil que algum pensamento ou estalo virava a chave; a qualquer momento ele se trancava, se afastava, se isolava ou o pior: uma irritabilidade súbita que beirava um surto psicótico.

Eu não sei como explicar. Talvez seja coisa da experiência de vida, infância, psicológico ou o metabolismo de cada um. Mas quanto mais o Sparky estava se afundando em heroína, mais eu repensava e tinha ressacas morais horríveis a cada pico.

A cada dia que ele injetava quatro, cinco vezes, eu embarcava com ele duas, três vezes no máximo. Mas não sei se realmente curtia aquilo, ou se comecei a entrar na vibe "se não pode vencê-lo, junte-se a ele". Acho que estava tentando preservar a confiança dele, não por mim, mas porque eu tinha um medo real que ele se matasse. 

Era assustador, mas ao mesmo tempo, não estava me saindo muito melhor. Estávamos competindo, de certa forma, quem era melhor em dar o pior de si.

STARRY EYESWhere stories live. Discover now