Epílogo

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Pelo menos a primeira parte - não vou arriscar dizer tão cedo que foi a parte mais difícil - acabou.

Não dá pra sermos ingênuos, achando que o amor cura tudo e que o passado com todas as feridas e mágoas, a bagagem que trazíamos um na vida do outro e as que criamos juntos iriam simplesmente desaparecer. 

Ainda é um trabalho em progresso; não podemos dizer que derrotamos os problemas, porque eles não morrem. E quase morremos quando tentamos, cada um à sua maneira, matá-los.

Ainda temos muito o que curar até o fim. Aos poucos, aprendo a rezar para que ao menos tenha uma outra oportunidade de consertar o que não conseguir a tempo nesta vida. 

Tudo isso aconteceu há quarenta anos, e não faz nem dez anos direito que consegui ter um primeiro vislumbre claro de o que é a vida real, e puta que o pariu...dói pra caralho olhar para trás e sentir que perdeu tempo, dói pra mais caralho ainda perceber que por mais longos que os dias tivessem sido naqueles anos, que o tempo de uma vida, como um todo, acaba e não volta. Não tem prazo bônus, o tempo perdido não volta. Quarenta anos passaram como um dia sobrio. 

Alguns dias atrás, ela chegou de uma turnê. Passei uma parte dos dias de folga com ela, fotografando e passeando em família, como deveria ter feito antes. Voltei pensando em tudo que havia visto, me perguntando quantas vezes estive naqueles países todos, sem nunca ver nada, olhando o horizonte com os olhos cegos. Voltei com um diário novo cheio de rabiscos espahados e me perguntando o que iria fazer nas próximas duas semanas até ela voltar. Fiz o que sempre fiz de melhor. Mal cheguei em casa e estava com a guitarra no colo e versos espalhados pelo chão. Não foi uma boa ideia; o Patrick era minha única companhia, Cherokee, ou melhor, nossa Cherry ainda era nova demais, provavelmente não lembra, mas às vezes sentia que dependendo do que eu tocava, se fosse triste ou um tema pesado demais, mesmo sem a letra, a harmonia da música já a deixava perturbada. Crianças entendem até demais, mas não sabem lidar com isso. E tenho todos uma esposa incrível, três meninas lindas e um menino, as cinco almas mais lindas do mundo, cinco maiores motivos do mundo para tentar ser alguém melhor.

Fora a Dazzle, que ainda existia e seguia firme, entretanto, não tão forte desde que o Razzle saiu por inúmeros motivos, e todos compreensíveis, não podia simplesmente me aposentar. Não depois de uma vida inteira passada mais da metade entre turnês, palcos e estúdios. Com dois grandes amigos, formei uma nova banda, e apesar de deixá-los esperando até que tivesse algo para começarmos a construir músicas para o primeiro disco, virei uma espécie de pai solo, esperando cada ligação dela entre os shows; estava do outro lado do balcão.

Com toda a parafernália de brinquedos, agasalhos, mantinhas e potes plásticos com frutas, entrei no estúdio com o Patrick segurando minha mão, a Cherry no colo, os dois me divertindo a cada olharzinho arregalado e curioso,  e vigilante quanto às mãozinhas nervosas, que não conseguia controlar diante de tantos instrumentos e botõezinhos. Foram os 15 dias mais divertidos que tive naquele ano, entre compor e brincar com eles, sentar diante do piano com uma sentada no meu colo, e o outro tamborilando as teclas e, claro...desobecendo as regras da Mavie e "roubando emprestada" a bateria para ele. Apesar de exausto todos os dias, tinha uma fita demo pronta que depois de um bom engenheiro de som e pré-produção, poderíamos gravar e mixar. 

Tinha os diários dela, e os meus. De toda aquela década insana. Aproveitei tudo que sabia e o que relembrávamos para talvez dar alguma força para quem estivesse naquele inferno que atravessamos. Se pelo menos uma pessoa sobrevivesse às drogas, o trabalho estaria pago. E no último dia sozinho com os filhos menores, quando voltei do estúdio pensando que seria uma última noite de sono, estava enganado para caralho: mal passei pelos degraus, com a mochila cheia de parafernália do Patrick, o ombro molhado com a cachoeira de baba que escorria da boca da Cherry (e mesmo assim, sempre curti o barulho do ronquinho de criança dormindo no meu ombro), escutei alguns acordes que não eram familiares: eram os mesmos que havia tocado no estúdio algumas horas antes. 

STARRY EYESWhere stories live. Discover now