MORTO - VIVO

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"Tornei-me insano, com longos intervalos de uma horrível sanidade" (Edgar Allan Poe, "As Últimas Cartas")

As coisas acontecem com a gente (ou a gente faz as coisas acontecerem, no caso dele) e dificilmente paramos para pensar no efeito que causa nas pessoas. Fiquei dois dias na casa da Vanity, totalmente apática. "Ele está morto", era a única frase que ouvia em minha mente, por mais que eu tentasse, ela não ia embora. Era um eco maldito que não acabava nunca.

"Sabia que aquele idiota de merda ia fazer alguma merda desse tipo!" Essa foi a outra frase que ecoava na minha cabeça com menos frequência. O Jack disse isso. Ele sempre procurava se manter distante de todas essas encrencas, os caras se ressentiam dele por isso, mas eu até conseguia entender. Ele era o único com um mínimo de lucidez e estava há anos cercado de um bando de moleques imbecis.

E essa frase representava bem o que todos nós estávamos pensando, cada um com um sentimento diferente. A Vanity entrou no quarto dela, eu ainda estava totalmente grogue pelo sonífero para elefante que ela me dava. Ela se sentou do meu lado, e eu percebi que ela queria me dizer alguma coisa, mas não me importava.

— Mav... — ela começou enquanto colocava a mão deslizando pelo meu ombro para me puxar para o ombro dela de novo. — Puta merda...eu nem sei como vou te contar essa...

— Morreu mais alguém? Quem foi agora?

Ela me levantou do ombro dela, segurando meus ombros com as duas mãos para olhar bem nos meus olhos.

— O Spark...ele...

Caralho! Eu sei que ele morreu, não tá bem óbvio?

— Ele está em casa.

Aquela frase não fez sentido nenhum e na verdade, acho que ela mesma não sabia muito bem se estava falando direito.

— Ele está em casa, Mav.

— Como assim? Velório? Quem decidiu isso?

— Mave, ele voltou. É isso...parece loucura o que eu tô falando, também não estava acreditando, mas é isso...espera...

A campainha tinha tocado e ela foi atender. Eu fiquei lá com mil nós de arame farpado dentro da cabeça. Morreu, não morreu, morreu mas está em casa? que merda é essa?

Quando ela voltou, o Tony estava vindo atrás dela.

— Puta merda... — bela forma de cumprimentar, não acham? — Mave, caralho...

A Vanity estava de braço cruzado na porta como uma mãe mostrando a filha bêbada pela primeira vez para um médico.

— Quando ela não está dormindo, ela fica assim.

— Vocês podiam parar de falar como se eu não estivesse aqui.

— Mave...puta merda... — o Tony se sentou do meu lado, e eu podia ver pelo jeito dele que ele devia estar cheirado e de ressaca. — Mandaram o Spark de volta para casa, ontem à noite.

— O quê?

— Olha só, eu não quero entrar em detalhes, mas do que eu entendi, ele morreu depois de um pico no hotel. A namorada de um dos caras chamou a ambulância, mas deram ele como morto. Um dos paramédicos insistiu até o coração dele voltar a bater...é loucura, eu sei, mas...

Eu olhava para ele e só conseguia escutar: morto, ambulância, médico, óbito...

— ...O cara voltou dos mortos, Mave. É isso.

— Resumiu bem, Van. — ele virou para mim de novo e nem quero imaginar como devia estar a minha cara. ele colocou a mão na minha perna olhando para mim com uma cara de "pois é". — é isso mesmo. Ele morreu, mas já passou. É absurdo, mas...ele é um absurdo ambulante...

Pra mim, eu estava em um universo paralelo onde todos eles eram capazes de brincar com a minha cara apesar do meu estado. Mas estava cansada demais até para mandar todo mundo tomar no cu.

— Aqui. — O Tony ligou para a casa dele. — Filho de uma puta desgraçado...quer ver do que eu tô falando? Aqui, Mav.

Ele me entregou o telefone e mandou eu escutar.

— Essa merda não tem graça, Tony.

— Escuta, faz o que eu tô mandando! Caralho...

"Olá...Você ligou para o Nikki. E...não posso atender no momento, porque estou morto. É..bom, preciso fazer algo a respeito.".

— Aquele...puta que pariu... — eu não conseguia acreditar naquela história absurda, mas era isso mesmo... — AQUELE FILHO DE UMA PUTA ARROMBADO! DESGRAÇADO! EU VOU MATAR ESSE IMBECIL! CARALHO!

E então, coisas voaram. O telefone voou para a parede e espatifou em mil pedaços, a mesinha ao lado da cama levou um chute e todos os potinhos de remédio, garrafa e copos de vidro com água, as flores, tudo em cacos espalhados no chão. Tive que comprar um espelho novo para a Vanity, e um carpete novo. 

STARRY EYESWhere stories live. Discover now