NÃO DESSA VEZ

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Não estava me sentindo tão fraco a ponto de precisar ficar na cama, mas o que eu ia fazer se levantasse? Dar uma volta no jardim? Conferir a casa, já que ela estava vazia de novo? Tomar um gole de Jack? Não tinha mais garrafa nenhuma, porque eu sempre fui tolo o suficiente para mostrar para ela todos os lugares onde eu escondia todo o lixo.

Peguei a cartela do tal "Paquipax". com alguma sorte, teria o suficiente para eu dormir mais três dias. Eu teria essa sorte se ela fosse uma idiota, certo? Pois é, só tinha um comprimido na cartela e um papelzinho dobrado embaixo dele escrito: "NÃO FOI DESSA VEZ..." com uma carinha feliz.

Já tinha ido uma vez para reabilitação e era uma merda. Só me enchiam de metadona e alguns Helcions e o resto? Choradeira, uma encheção de saco sobre "reconhecer que existe uma força superior", blablabla. Eu conhecia bem a tal força superior: ela sempre me fazia voltar a procurar agulhas e seringas por aí. Olhei mais uma vez para o comprimido na cartela, como se fosse um gatinho abandonado pedindo para ser adotado.

— Não... — eu resmunguei enquanto colocava de volta. — "Não foi dessa vez".

Pensei em me vestir e dar uma volta, mas o closet parecia ameaçador agora. Irônico, não é? Era justamente onde eu me sentia seguro quando estava neurótico. Voltei para a cama, olhando para a parede como um babaca catatônico e olhei para a mesinha de cabeceira. Sempre tinha alguma coisa para revirar quando eu estava na nóia, e podia ser uma opção. E tinha uma notícia agridoce; a gaveta estava limpa e organizada, nenhum sinal de qualquer vestígio de drogas nem parafernália de droga, apenas livros. Eu colecionava livros paperback, não por serem baratos, mas porque eu podia comprar e guardar em qualquer lugar. A maioria eu trouxe de aeroportos por aí.

Peguei o "1984", porque era o meu "livro infalível"; toda vez que eu pegava, mesmo que só para folhear, acaba lendo de cabo a rabo. Estava um perfeito idoso: sentado na cama com o abajur aceso e um livro no colo. Talvez eu devesse fazer um chá também e uma bolsa de água quente para as articulações.

Ouvi o barulho do portão da garagem abrindo e não tinha como me enganar: o estrondo de um escapamento aberto que só podia ser o Maverick vinho dela chegando.

— Hey... — eu disse assim que ela apareceu na porta. Usava uma calça justa e uma sapatilha vermelha. A camiseta do Motörhead eu conhecia muito bem da minha mala, ficou meses lá dentro e eu nunca sequer cheguei a tirar de lá. — Pensei que você tinha ido embora.

— Cheguei bem perto, na verdade. Você é um babaca, sabia?

Eu só encolhi os ombros, por que eu sabia muito bem, tanto quanto ela.

— Você vai ficar?

— Por um tempo. Estou ficando sem desculpas para negociar com eles, mas...

— Não tem que negociar nada...só preciso mesmo de um tempo pra acostumar com a ideia.

— A gente vai ficar batendo de frente até quando, Spark?

Essa eu não sabia responder. Na verdade, parecia que estávamos prestes a bater de frente de novo. A cada bronca que eu tomava, menor eu me sentia, e era difícil pra caralho não acabar virando o Mr.Hyde de novo.

Ela se sentou de novo na beirada da cama e tirou o livro das minhas mãos.

— A última vez que eu te vi...você lembra, como foi?

— É...digamos que é mais um daqueles momentos que eu tento não lembrar nunca mais.

— Acho que eu nunca te contei como eu vim parar aqui...

— Você sempre vinha parar aqui de um jeito ou de outro, Mavs... — era pra ser engraçado, acredita? — Tá...desculpa... por que você veio parar aqui?

— Por que quando a sua avó morreu você foi parar na minha porta. Devo ter pensado algo como "agora é a minha vez"...sabe, de precisar de você.

— Você vai ter que ir direto ao ponto se tiver algum...

— Ah, sim, tinha um bom motivo. A minha mãe morreu. Eu soube naquele dia, mas já tinha sido até enterrada.

— Mavs...

— Não é pra você se sentir mal. É que eu não vim aqui procurando colo, nada assim. Só queria você por perto, sabe...caso eu pesasse a mão de novo. Eu queria apagar, não necessariamente ir atrás dela.

— Eu não fui lá grande ajuda pra você, né...

— Bom, se a minha intenção era apagar, você fez um ótimo trabalho — ela riu sem vontade enquanto esfregava a palma da mão no maxilar, bem onde eu a golpeei naquele dia. — Deu certo, de alguma forma, eu tive que esquecer isso... sabe, me deu um motivo urgente pra esquecer o que era importante.

— Por que você tá me contando isso agora? Quer dizer...

— Só pra você não sentir que toda vez que você faz alguma coisa errada, talvez não seja tão errada assim. Eu estava furiosa bem antes de chegar aqui, então...se as coisas saíram do controle, talvez fosse por que eu queria assim...

— Você tá me agradecendo por ter quebrado a sua cara, é isso?

— De jeito nenhum! Só...eu devia ter me esforçado mais para quebrar a sua primeiro.

— Hm...na verdade, eu só conseguia usar uma narina por um bom tempo e colei dois dentes depois daquele dia.

— Como eu nunca soube?

— E eu ia deixar você saber que fez esse estrago? Tenho meu orgulho pra sustentar também...

— A gente não tem a menor noção...

— O Jack sempre diz que somos dois imbecis que ainda vamos matar um ao outro.

— Bem... — ela se levantou e foi para a porta — Deve ser a qualquer momento a essa altura.

— Do que a sua mãe morreu, afinal?

Ela saiu dali ignorando totalmente a minha pergunta. Imaginei que ela precisava de um banho, porque a porta do banheiro estava aberta e ouvi o chuveiro ligado. Ela voltou, enrolada em uma toalha e com mais uma nos braços.

— O que foi?

— Eu disse que ia cuidar de você, e é o que você quer, não é? Então, já passou da hora de você tomar um banho decente.

— Ahhhh, mãããããeeee.... — me joguei de costas na cama. Era pra ser engraçado, e deu certo, mas não foi como eu planejava: enfiei a parte de trás da cabeça no encosto da cama... — ooooouch...

— Nisso que dá ficar dormindo no closet... — ela riu enquanto estendia a mão para mim. — Vamos. Sem choro, sem reclamar, sem chiar. 

STARRY EYESWhere stories live. Discover now