Cachorrinhos e Arco-Íris

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— Você estava ouvindo blues ontem, não? — olha o tipo de assunto que eu precisei pesquisar no arquivo mental

Ela me olhou como se eu fosse algum tipo de aberração incapaz de formar uma única frase coerente para começar uma conversa - coisa que eu era mesmo.

— Às vezes eu gosto de escutar. Relembrar alguns acordes, sabe como é.

Eu estava jogado no sofá com as duas pernas na mesinha de cabeceira.

— Quer ouvir um pouco agora? Tipo...sei lá, Howlin' Wolf ou...

— Buddy Miles. Nada de Howlin' Wolf.

Ficamos durante uns 3 discos de blues sentados no sofá que eu comprei mas nunca usei. Era de couro branco e coberto com uma manta que comprei em uma loja de coisas góticas na turnê pela Alemanha. Adorava aquela manta, vermelha de oncinha. A televisão no rack preto estava desligada e tinha colocado um disco do Buddy Miles em uma vitrola cara da época, com tape deck e equalizadores que faziam a música explodir pela casa. Estávamos olhando para a TV desligada, cada um na própria brisa, fumando cigarros, bebendo suco de laranja e água.

— Você pensa na sua família às vezes? — ela perguntou enquanto apagava um cigarro. — Quer dizer...

— A maior parte eu fico tentando juntar as peças soltas e tento encaixá-las pra parecer que é um quebra-cabeça completo. Mas às vezes tem certas músicas que eu evito ouvir justamente porque me fazem pensar nessas coisas bem além do necessário...

— Tipo...Howlin' Wolf?

— Era o favorito dele. Pra valer. Se não tocasse pelo menos uma do Howlin' Wolf, pra ele, era um desperdício de noite...tanto que só de falar nele, já começa a tocar inteiro o London Sessions na minha cabeça... — ela suspirou olhando para...bem, o nada — Deve ser difícil. Sabe...essa barra que você segurou sozinho tanto tempo.

— Sabe de uma coisa? Não é difícil, é uma merda. E só piora, primeiro a Nona, a qualquer momento, pode ser o Tom, e aí não vai restar mais ninguém. É em algo assim que eu penso. Quem vai sobrar pra me dar as peças que faltam, se é que tem alguma?

Ela se calou, só encolheu os ombros e recostou de volta no sofá, com os pés descalços na mesinha de centro de vidro.

— Já que estamos no tema, você começou a contar da sua mãe e não terminou. Ela morreu, você foi a última a saber, e...?

— Só isso mesmo. Não tem muito...quer dizer. Fiquei um pouco confusa...ela pediu para a minha irmã, Angie ficar em silêncio, sabe...quando descobriu o câncer.

— É uma coisa legal, sei lá...

— Não sei se foi uma coisa de "me poupar". Acho que...é idiota, mas é mais provável que ela já se sentisse descartada. Tem muita coisa que eu não sabia e só depois que ela foi parar sete palmos debaixo da terra que eu soube. Eu tenho uma irmã caçula, acredita? Não era só a doença que ela não me contou, mas mesmo que quisesse...ela sabe que eu não ia me importar.

— Quando foi a última vez que você falou com ela?

— Pessoalmente? foi numa turnê, passamos por Wisconsin e eu aproveitei para passar por Dart. É onde ela morava depois que casou de novo.

— Como foi isso?

— Não foi. Ela berrou lá de dentro que não podia entrar e que por ela, ela não tinha outra filha. Era justo, considerando o meu estado...quer dizer, já não era mais um segredo, estava em todo lugar a "beautiful mess" . E era como eu chamava a Cherry, quem diria? De qualquer forma, também falei várias vezes que não tinha mãe. Coisa de drogada.

STARRY EYESWhere stories live. Discover now