AA - Anjos e Ausência

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Décimo-quinto dia

"Não tive escolha. Se continuar em silêncio a cada sessão de terapia, nunca vai diminuir para uma vez por semana. Na verdade, depois da segunda sessão, passaram a ser três dias ao invés de dois. A terceira sessão às quintas-feiras, logo depois do grupo de apoio. Boa estratégia, mas não é a mesma coisa conversar com pessoas que passaram por muita merda pior que as minhas e esperar que eu continue falando para um engomadinho que só deve tomar um chopp aos Sábados.

Talvez tenha ido em algum show.

Mas agora, não restou escolha. Acho que perdi esse cabo-de-guerra. Quanto mais tempo em silêncio, mais tempo internada. E eu cansei desse lugar. Cansei de esperar visitas e nunca saber quem será ou se não vem ninguém. Quero encontrar as pessoas, sinto falta delas. Cansei de tentar imaginar como será viver sem a pentelha estragando a noite delas.

Enfim, me recostei no maldito sofá amarelo-patinho; cada vez que chego neste lugar estou torcendo para conseguir ao menos cochilar um pouco, mas NUNCA dá certo. É um sofá-cocaína. Parece confortável, mas tira o sono. Toda sessão ele tenta começar uma conversa com uma pergunta diferente e eu estou sempre curiosa para ver se ele consegue acertar alguma que eu queira responder.

É um médico como qualquer outro, só que ele espeta a sua mente ao invés da sua pele. Espeta e pergunta "dói quando eu espeto aqui? E aqui? Aqui?".

— Você tem algum plano?

Lá estava a pergunta do dia.

— Plano? — respondi enquanto me endireitava no sofá e acendia um cigarro. Comecei a bater ponta da brasa compulsivamente no cinzeiro sem sequer ter formado cinza ainda. — Basicamente, o plano é: ficar limpa, sair deste lugar sem olhar para trás. Para nunca mais voltar.

Ele riu um pouco, confortavelmente sentado na poltrona de couro branco. Bem parecida com uma que o Sparky tem em casa. Mas era vermelho-escuro e os pés mais baixos, tipo Luis XV. Espera, eram duas...

Ainda não estou totalmente recuperada, e os móveis claros, janelas enormes e o dia lindo e ensolarado lá fora aumentavam a minha fotofobia pra caralho.

O que me deixava mais irritada ainda. Como se estar sentada naquela sala contra minha vontade, diante de um cara que nunca vi na vida que esperava que eu contasse a minha vida toda. Coisas que não falei nem para quem eu conheço há anos, que viveu debaixo do mesmo teto. Como ousa esperar algo assim de mim?

Quem deu autorização para ele furar essa fila?

— Alguma vez você conversou com alguém sobre...você mesma?

— Algumas. Quer dizer...tem um amigo, ou coisa parecida. Tinha.

— Você conseguia confiar nele para falar mais do que aqui.

— É ciúme?

— Esse tom passivo-agressivo não vai adiantar. Não estou aqui para medir forças contra você, Mavie. Que tal começarmos por alguém que não seja você mesma?

Cruzei os braços e me recostei um pouco mais. "Isso vai ser divertido".

— O que levava você a desabafar com esse ex-amigo?

— Basicamente, ele passou por coisas bem piores que eu. E eu ouvia. Meio que gostava de ouvir as histórias dele. Ele é bem perturbado, também. A forma dele pensar é meio sinistra e doentia. E tinha heroína também. Na verdade, ele tinha tudo. Era uma espécie de feira de drogas na casa dele.

STARRY EYESWhere stories live. Discover now