Capítulo LXXI - TONHO

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Era de tardinha e eu estava desenhando. Como todas as manhãs a Sara me acompanhava, eu aproveitava esse horário para ficar sozinho, o que era bem legal.

Além do mais, eu não queria que ninguém soubesse que já faziam alguns dias que eu não desenhava mais o nascer do sol ou o pôr do sol. Eu sei que isso é um pouco constrangedor, mas eu estava desenhando a Sara e, por motivos óbvios, não queria que ninguém soubesse disso. Ou eu seria o motivo de chacota do grupo pelo resto da minha vida.

– Está desenhando o quê? – perguntou a Sara, dando-me um susto.

Eu não estava contando com a sua presença, já que ela não aparecia há dias. Rapidamente tentei enfiar o papel no bolso, mas já era tarde demais.

– O que você está tentando esconder, Tonho? – insistiu.

– Não é nada – respondi, mas minha expressão sem graça me traiu.

– Você quer mesmo que eu acredite nisso? – Ergueu uma sobrancelha.

Sentindo o meu rosto pegar fogo, tirei o papel do bolso e a entreguei sem conseguir encarar seu rosto. Ela ia rir de mim, eu tinha certeza.

Não sei quanto tempo se passou entre o momento em que ela tirou o papel da minha mão até o instante em que o silêncio foi quebrado. Mas sei que foram minutos quase intermináveis.

– Meu dente não é tão separado assim – reclamou, enquanto analisava o espaço entre os dentes com os dedos. – Com exceção desse pequeno detalhe, o desenho está perfeito!

– Como é? – tornei, sem conseguir acreditar no que ela dizia.

– Olha pra mim e olha pra esse desenho. – Ela posicionou a folha de papel ao lado do seu rosto, para que eu pudesse comparar um com o outro. – Caramba, Tonho! Você está ficando melhor a cada dia.

– Você acha mesmo? – insisti, cético.

– Acho.

Sorri aliviado, pegando o papel de volta das suas mãos. Dei uma conferida no desenho e percebi que ela tinha razão. O desenho estava muito bom mesmo.

– Se eu tivesse um material melhor, acho que conseguiria até melhorá-lo – pensei alto.

– É sério? Você acha que consegue melhorar?

– Acho que sim.

Seu rosto se iluminou em um sorriso lindo.

– Essa é a sua chance, Tonho!

– Minha chance? Minha chance de quê?

– Sua chance de sair dessa vida, oras – disse, como se fosse óbvio. – Você tem talento pra caramba. E se você conseguisse um emprego como desenhista em um dos jornais da cidade? Ou ilustrador?

Era isso. Eu sabia que logo viria alguma sugestão como essa. Não que eu não gostasse da ideia de ter um emprego, ainda mais poder trabalhar numa coisa que eu gostasse tanto como desenhar. Mas a vida não era tão simples para pessoas como nós. Quem empregaria um cara que não tem onde cair morto? Um cara que nem ao menos toma banhos todos os dias?

– Que cara é essa? – insistiu, curiosa.

– Ah, Sara. Essas coisas são complicadas – disse, por fim.

– É claro que são – concordou. – Tudo é complicado nas nossas vidas. Mas se a gente não tentar algo novo, vamos morrer nesse lugar. Olha só pro Zeca...

Não pude evitar um resmungo e ela notou.

– Eu sei que você o culpa por ter nos abandonado, mas ele está certo. Por mais que ele tenha se baseado na raiva que sentia, ele pensou no futuro dele, enquanto nós vamos envelhecer nessa casa, sem nenhuma perspectiva.

– Nós já conversamos sobre isso, Sara.

– Eu sei disso – concordou, aproximando-se de mim ainda mais e colocando seu braço em volta de mim. – Mas se não dermos um primeiro passo, não vamos sair daqui nunca, certo?

– É.

– Promete pra mim que vai pensar a respeito? – insistiu.

A contragosto concordei. Era melhor do que tê-la no meu pé insistindo nessa história sem pé nem cabeça.

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Tonho, o rei do pessimismo. Vocês também conseguem ver a nuvem negra em cima da cabeça dele?

Atrasei um pouco porque estou em ritmo de feriado e, por isso, completamente perdida. Mas é isso aí.

Beijo e até amanhã.

As Últimas Cobaias - Livro 3Where stories live. Discover now