Capítulo CLXXII - TIÃO

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Eu não me lembro do que aconteceu no caminho de volta. Eu só sei que a Suzana não parava de chorar e ela não queria me contar o que tinha acontecido, por mais que eu insistisse.

O táxi parou em frente a um pronto atendimento e um arrepio percorreu a minha espinha.

– Você vai continuar me torturando por mais quanto tempo? – perguntei, sem qualquer humor na minha fala. Eu estava preocupado e queria saber de uma vez o que ela estava escondendo de mim.

– Você precisa ser forte, Tião – começou, enquanto me guiava por um corredor curto.

Chegamos a uma sala antes mesmo que eu pudesse perguntar o motivo de tudo aquilo. O Tonho e a Helô estavam sentados em cadeiras plásticos, completamente sujos em sangue e com os olhares perdidos. Primeiro eu pensei que o problema fosse com eles, mas então eu notei que a Sara não estava ali e minhas mãos começaram a tremer.

– Onde está a Sara? – perguntei, com a voz esganiçada. – Onde está a minha irmã.

A Helô me fitou desolada e começou a chorar. O Tonho não conseguia olhar nos meus olhos.

– Eu perguntei onde está a Sara!

A Suzana me segurou pelos ombros e me encarou com seriedade.

– Você vai ter que ser forte – repetiu.

– Ela está ferida? É grave? – O pânico se apossou de mim só de imaginar que alguma coisa tivesse acontecido com ela. Devia ser algo grave pela cara deles.

– Ela se feriu. Foi muito grave e... Ela não resistiu, Tião.

Ela não resistiu... Levou algum tempo para que eu compreendesse o que aquilo significava.

Primeiro eu pensei que aquilo tudo fosse uma piada de muito mau gosto. A Sara era a garota mais forte que eu já tinha conhecido e a ideia de ela ter morrido era inconcebível. Conforme o tempo foi passando, eu notei que eles não estavam rindo e nada do tipo. Eles continuavam chorando, com olhares perdidos e sem conseguir me encarar. Então eu tive a impressão de não viver o que aconteceu a seguir. A Suzana me acompanhou até uma cadeira, ofereceu um copo d'água para mim, falou um monte de coisas, mas é como se eu não estivesse ali e visse tudo de fora.

Não sei quanto tempo se passou, mas só saí do transe quando a Helô me chacoalhou com força.

– Você está se sentindo bem?

Eu era um bebê quando os meus pais morreram, por isso não lembro de nada sobre eles. Quando meus tios morreram, eu não senti nada além de alívio, porque eles nunca fizeram questão de esconder o quanto detestavam a nossa presença naquela casa. Mas a Sara... Ela estava comigo desde sempre. Ela me defendia, cuidava de mim, me dava uns cascudos quando eu merecia e me dava força quando eu precisava. Ela era minha amiga, minha parceira e a única pessoa que eu sempre pude contar.

Ela sempre esteve comigo o tempo todo e nunca passou pela minha cabeça que um dia ela simplesmente poderia não estar mais aqui. Na verdade, eu ainda não acreditava que ela estava morta. Eu tinha a impressão de que ela fosse entrar por aquela porta a qualquer instante e me fazer uma ameaça sem fundamento caso eu não fizesse o que ela julgava ser certo, mas a certeza de que isso nunca mais aconteceria me deixou sem chão.

– Você está bem, Tião?

Concordei, balançando a cabeça, mesmo que eu estivesse com o olhar perdido e completamente fora de órbita. Será que se eu fechasse os olhos, poderia descobrir que isso tudo não passava de um pesadelo?

– Você quer ver ela?

Aquela pergunta me deixou estarrecido. 

– Você quer saber se eu quero ver o corpo sem vida da minha irmã? – indaguei, sem conseguir encará-los. – Não. Eu não quero. Ela é a pessoa mais sorridente que eu já conheci e eu quero me lembrar do sorriso dela e não de um... corpo.

Eu via todos eles chorando, abraçando-se e no mais completo desespero. Eu, pelo contrário, estava apático, como se nada daquilo fosse verdade. Ficava me indagando se uma hora eu ia me dar conta do que estava acontecendo ou se eu ia passar o resto da minha vida daquele jeito.

– Pensa bem, Tião – insistiu a Helô. – Depois disso você nunca mais vai poder vê-la.

– Qual é? Você está falando isso porque tem medo que eu me esqueça do rosto da minha irmã?

– Não é nada disso. Só estamos falando isso porque sabemos que você não está bem. – Interveio a Suzana, temendo uma briga.

– Ver o corpo dela não significa que eu a ame mais, está bem? – disse, com a voz alterada. – Eu tenho esse direito, não tenho?

– É claro que tem.

– Ótimo.

Levantei da cadeira e saí daquele lugar. Eu precisava de ar, precisava respirar, precisava sair daquela sala cheia de pessoas tentando me convencer a fazer o que eu não queria fazer. Sentei-me na escadaria que dava para o hall e fiquei ali em silêncio, até ser atrapalhada pela Malu.

– Se você vai perguntar se eu estou bem, eu não respondo por mim. – Disparei, antes que ela tivesse oportunidade de dizer qualquer coisa.

– Eu não vou perguntar – respondeu, sem se ofender com a minha grosseria. Ela se sentou ao meu lado e ficou em silêncio por muito tempo.

– Você viu ela? – indaguei.

– Vi. – Balançou a cabeça. – Preferia não ter visto.

– Eu tenho a impressão de que ela vai aparecer a qualquer instante, com aquele sorriso enorme, falando alguma besteira e me dando um cascudo. Parece que nada disso é verdade.

Eu não esperava uma resposta dela, nem que ela fosse me consolar ou dizer alguma frase bonita. O seu silêncio era a melhor resposta que eu poderia receber.

– Onde estão os outros? – Tentei mudar o ruma da conversa, para tentar me sentir normal por alguns instantes.

– O Bruno está na recepção e o Zeca está por aí, arranjando alguma desculpa para poder se culpar pelo que aconteceu.

– O Tonho colocou a culpa nele? – perguntei, alarmado.

– Não. O Zeca fez isso por conta própria.

Balancei a cabeça em desaprovação. Ele sempre teve essa mania idiota de querer carregar o mundo nos ombros e eu não conseguia entender como ele aguentava viver desse jeito. Isso devia ser desgastante.

Quando a Malu entrou no nosso grupo, há pouco mais de um ano, eu já sabia que nada voltaria a ser como antes. Agora, mais do que nunca, eu tinha certeza disso e eu não sabia o que seria do grupo depois disso. Superar a falta da minha irmã já seria muito difícil e eu precisava daquelas pessoas para conseguir.

As Últimas Cobaias - Livro 3Where stories live. Discover now