Misericordioso

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Misericordioso

Capítulo 53

Sítio...

A caminhada deveras foi longa.
Às dez horas da noite senhor Damião e Ayana chegam da vila.
Dona Alma abre a porta e vê Ayana descer da carroça entristecida e com os braços vazios; apesar de saber que o menino já tivera o destino traçado desde que, os remédios abortivos não surtiram efeito, seu coração bateu mais rápido quando ouviu a carroça chegar.
Dona Alma, imaginou em sua mente, que Damião o traria de volta, que dariam um jeito...
... mas, o menino ficou na vila, na roda dos enjeitados...

Senhor Damião, vai até a tuia e desarreia o cavalo.
Ayana olha no olho de dona Alma, e vê sua alma lamentosa...
- Foi tudo bem com vocês?
- Sim, fomos bem e voltamos bem.
- O menino?
- Deixei-o na roda dos enjeitados, como a senhora me pediu.

A mulher, contrai os lábios, sente seus olhos marejar, os enxuga com a manga da blusa, respira fundo e diz:
- Foi o melhor, foi realmente o melhor...
- Desculpe-me sinhá, mas foi o melhor para todos, menos para o menino, pois ele não conhecerá o amor de mãe, nem de avós!
A vida dele será solitária e amarga.
- A vida da minha Catarina, sempre será amarga e triste.
- Espero que não.
Como se comportou o Gabrielzinho?
- Muito bem!
Não nos deu um pingo de trabalho.
- Fico agradecida.
- Eu quem agradeço a você por ser tão prestativa.

Damião chega e relata como foi a viagem, Ayana entra em seu quarto para descansar e vê seu filho dormindo no canto de sua cama.
Ela olha para aquele lindo rostinho de criança e diz:
- Durma meu anjinho, a mamãe sempre lutará por você, eu nunca vou te abandonar, nunca!

Assentamento...

Tudo está orquestrado para que no meio da noite invadam a fazenda Santa Efigênia. Muitos dos homens que estavam no quilombo foram escravos nessa fazenda. O proprietário herdou essas terras a poucos anos atrás, quando seu pai faleceu.
O Coronel Justiniano de Queiroz, sempre foi um senhor cruel com seus negros, já o novo proprietário, seu filho, tem um coração mais amolecido, mas os negros alforriados imputam a ele as maldades recebidas por seu falecido pai...

Nos arredores da fazenda...

Enquanto todos os negros estão a espreita, aguardando somente o sinal que virá a certa hora da noite do alpendre, com o aceno de um candeeiro.
Na fazenda há uma negra cozinheira, entendida em receitas de chás e misturas feitas com raízes e folhas, que com o cozimento certo e a quantidade certa pode adormecer ou até matar um homem.
Ela misturou suas porções e às colocou na comida e na bebida de todos.
Essa mulher é chamada de bruxa pelos negros, porém os senhores da casa não têm ciência de tal informação.

Há também um negrinho muito esperto e querido da sinhá. Ele trabalha como ajudante na cozinha; corta lenhas, acende o fogão, carrega água...
Ele por acaso, ouve a conversa entre a negra feiticeira e o chefe dos negros e, pouco antes da refeição, chama a sinhá...

- O chefe do bando, um negro forte, com seu rosto e costas todos marcados pela crueldade que sofreu nas mãos dos feitores e dos capangas da fazenda em questão; diz com uma voz cheia de ódio e vingança:
- Não deixem nenhum branquelo vivo, matem a todos!

Leôncio olha para ele com os olhos arregalados e descrentes nas palavras que ouviu, pois, apesar de desejar matar Samuel, jamais pensou em tirar a vida de mulheres e crianças.

- Vocês irão matar as mulheres e crianças?!
- Nós iremos matar todos os que tiverem pele branca ou aqueles que trabalham para quem tem a pele branca!
Não me digas que tens pena dessa raça?!
- Não é questão de ter ou não pena, é questão de matar vidas inocentes.
- Já vi que você viveu em uma fazenda de brancos bons.
Eu não! Pois nessa fazenda que vamos invadir, tiraram minha dignidade e minha humanidade, por isso não vamos poupar ninguém!

Você quer voltar para debaixo das saias da mamãe?!
Volte então!
- Não, eu prometi e irei com vocês!
Farei o que for preciso para que as crianças e mulheres do acampamento comam.
- Isso aí, gostei de ver!
Diz Homero, o chefe do bando.

Mal terminam a prosa e vêm uma luz de candeeiro balançando no alpendre da casa grande.
- É o sinal! Vamos todos sorrateiros, não queremos acordar os capangas.
Se bem que, imagino que não irão acordar nem com um estrondo de trovão.

Dizendo isso, da uma gargalhada estridente.

E todos os companheiros negros saem abaixados e em um silêncio profundo...

- Vamos negada, e sem testemunhas!

Um a um, todos os capangas foram sendo capturados, pois suas pernas e braços estão moles e adormecidos, isso facilita a chegada do bando.

O coração de Leôncio está pesaroso, ele olha para às escadarias e vê que Homero sobe rapidamente e ruma para a porta da frente da casa.
Leôncio desvia dos outros negros e chega próximo a Homero.
- Procurem os senhores! Tragam aqui para baixo. Tenho umas continhas para com essa gente branca...
Leôncio sobe para o segundo andar da casa, e com ele sobe mais dois negros...
Uma a uma todas as portas dos quartos vão se abrindo.
Em um dos quartos, que aparentemente está vazio, Leôncio abre a porta do "closet" alumia com o castiçal que está segurando em suas mãos, em meio às roupas que estão postas em um grande desalinho, vê um homem jovem, sua esposa e duas crianças.
Seu coração pula igual a um burro chucro; olha aqueles seres humanos aterrorizados...
A mulher segura a boca da criança maior que se debate tentando gritar, o pai segura um bebê adormecido em seus braços trêmulos.
Leôncio se compadece e faz um gesto com seu dedo indicador sobre a boca, dizendo que todos façam silêncio...
Ele balançam a cabeça confirmado que entenderam.

- Leôncio!
Tem alguém aí?!
Pergunta Homero, que está no quarto ao lado procurando jóias e também a família para matá-la.
- Não, o quarto está vazio.
Homero aparece na porta do quarto e vê Leôncio com a porta do "closet" aberta.
- Eles estão aí dentro?!
- Não estão, mas quero levar um desses vestidos de sinhá para minha Ayana!
O negro fica meio desconfiado, mas Leôncio puxa alguns vestidos para fora e diz sorrindo.
- É esse!
Minha nega vai ficar uma princesa nesse vestido!
Enrola a peça e caminha para a porta, deixando o "closet" aberto.
Quando ele chega próximo de Homero ele diz sorrindo:
- Para mim o sorriso da minha nega vale mais que ouro.
- Estamos aqui pela comida e por jóias, não por vestidos.
- Um vestido não pesa nada, e olha aqui, achei essas jóias no outro quarto.
Diz sorrindo balançando na frente do negro alguns colares e brincos.
- Vamos então, aqueles safados devem ter parte com o demo, pra onde aqueles malditos foram?
- Só sei que aqui não estão e se nós demorarmos, quem vai pegar a gente vai ser a guarda!
- Vamos embora negaiada!
Fala Homero com todos.

Ao chegarem ao pátio, os capangas estão mortos espalhados pelo chão.
A negra bruxa diz:
- Os patrões estão na casa, sim!
- Acho que eles ficaram sabendo, pois se tivessem bebido seu chá estariam dormindo!
Ou você avisou, ou alguém avisou que veríamos.

Fala Leôncio com voz firme.

- Não brinque comigo negro, você não me conhece, não sabe o que posso fazer!
- Cale sua boca feiticeira!
Leôncio tem razão, não achamos eles porque fugiram, e se fugiram, foram avisados.
Coloquem fogo em tudo!
- Escuta Homero, não temos tempo, se colocarem fogo os vizinhos verão o clarão e virão para cá.
O melhor é pegarmos tudo e irmos o mais rápido possível!
- Mais uma vez você tem razão.
As fazendas vizinhas são muito próximas uma da outra, com certeza eles vão ver o clarão.
Vamos embora, agora!
E todos os negros partem levando todos os mantimentos e animais que conseguem levar.
Leôncio leva o vestido enrolado em seu braço e em seu coração misericordioso à alegria de ter salvado uma família.

Maria Boaventura.

Espinhos da LiberdadeWhere stories live. Discover now