Livramento

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Livramento

Capítulo 58

O coração do homem bom está sempre cheio de angústia e arrependimento, o sono é- lhe roubado quando seus atos estão em desalinho com sua consciência.
É impossível sentir paz quando pratica algo desonroso ou desonesto.
Sua alma e seu espírito clamam ansiosos para que se concerte o erro cometido.

O coração do homem mau, não o incomoda, não o acusa...
Se alegra com seus erros e regozija com sua falta de moral e escrúpulos.
Dorme seu sono profundo e deplorável.

Quilombo...

- E aí, vejo pela expressão de seu rosto que a invasão não foi como o esperado. Diga-me o que aconteceu para meu amigo estar tão acabrunhado?
- Nunca imaginei que chegaria à participar de algo tão monstruoso...
Tenho braços para trabalhar e...me escute, não podemos ficar mais aqui, temos que partir o mais rápido possível.
Tenho absoluta certeza que a guarda imperial baterá às portas desse quilombo muito em breve, quiçá hoje mesmo!
- Foi tão ruim assim?
- Nós negros, podemos e devemos sentir raiva de nossa condição de cativos, porém, tirar a vida de mulheres e crianças brancas, somente por serem brancas! Não, isso eu não admito nem participo...
Não eu, não eu...
- Eles mataram mulheres e crianças?!
- Não, mas da próxima vez, matarão.
- Temos mesmo que ir embora, ouvi alguns negros cochichando sobre você.
Penso que estão enciumados por Homero te dar ouvidos em alguma coisa...
Acho melhor irmos o quanto antes.
- Vou esperar o efeito da água ardente passar, aí falarei com Homero, somente depois partiremos.
Aqui não é um bom  lugar para se estar nesse momento.

Quando chega à tardinha, Homero manda  os homens levem os mantimentos para o meio da mata e os esconderem. Manda também que todos os animais sejam sacrificados e a carne seja charqueada...
Leôncio se aproxima, senta-se perto de Homero e diz:

-Meu amigo, sou-lhe grato pela acolhida que nos destes.
- Porém?!
Diz Homero, olhando para o rosto de Leôncio.
- Porém, tenho que partir...
Irei até a Capital atrás de minha mulher, já passei por muitas coisas nesse ano que se passou, já sofri tudo que um negro infeliz pode sofrer, mas o amor por aquela negra me faz esquecer de tudo e superar tudo!
Preciso encontrá-la, preciso!
-Vai deixar seus irmãos?
Sua gente?
Aqui no quilombo tem muitas mulheres lindas precisando de um homem feito você.
- Nenhuma delas é Ayana, nenhuma delas é a mãe de meus filhos a mulher que amo!
- Uma pena, um homem feito você nos seria muito útil.
- Você tem bons companheiros aqui. Quem sabe um dia, se encontrar minha negra, eu volte e me estabeleça por essas bandas.
- Quem sabe...boa sorte em sua procura.
- Obrigado!
- Leôncio! Tome aqui dois contos de réis, é para as despesas no caminho.

Leôncio pega as moedas, as aperta em sua mão, agradece e diz:
- Sou-lhe realmente grato pela acolhida. Cuide bem do nosso povo e até um dia! Se Deus assim o quiser.

Na Capital...

O parto feito por uma cesária era algo raríssimo, somente acontecia em casos extremos, onde a vida da mãe ou do bebê estivesse verdadeiramente em risco.
Doutora Aurélia e Letícia nunca haviam feito uma cirurgia dessa magnitude, entretanto já não havia saída para a jovem Antonella e seu filho...

- Eu as autorizo!
Façam todo o possível para salvarem minha filha, ela não merece morrer.

Antonella era uma jovem de quinze anos, inocente e apaixonada. Teve sua honra tomada por um doidivanas amigo da família. Ela com quinze e ele com trinta. O mau caráter a conquistou com versos e poemas, cativou seu inocente coração com palavras macias e sedosas.
Em uma noite de sarau no palácio o tal homem ficou a sós com a garota e colheu-lhe a flor mais preciosa para uma senhorita; prometendo-lhe amor eterno...
Esse amor se despertalou quando o homem enjoou-se da jovem por causa de uma meretriz. Os pais descobriram tarde demais, pois a menina estava grávida.
Sua mãe inventou uma viagem para Europa com uma tia.
A trancou no quarto desde então, a menina viveu uma desilusão e enclausurada em seu quarto até esse dia, que deveras está longe de se acabar.

- Aurélia, nunca fizemos uma cirurgia tão complexa.
- Não há outro modo para salvarmos os dois...
- Temo que ela não sobreviverá.
- Tenhas fé!
- Tenho fé, porém tenho medo.
- Com medo ou sem ele, vamos tentar.
- Está bem. Que Deus nos ajude!
- Ele nos ajudará.
As duas médicas pedem para que limpem uma mesa grande que está na sala de jantar, que levem para o quarto. Enquanto
Seguem as deliberações de Letícia, Aurélia vai até seu consultório e pega a anestesia
gases e todo o necessário para a saturação do corte.

Ao chegar na casa, já está tudo preparado para a cirurgia.
A jovem é posta sobre lençóis limpos por cima da mesa, castiçais, lampiões e velas postos de maneira que clareie por completo o ambiente.
O clorofórmio é posto sobre as narinas da jovem, que adormece...

Os pais estão apavorados do lado de fora do quarto, a parteira é a auxiliadora durante a operação.
Álcool e passado nas mãos ...
Aurélia pega o bisturi das mãos de Letícia, que não cessam de tremer.
- Deixa que eu faço, minha prima.
- Está bem, da próxima vez, sou eu.
- Claro, da próxima com certeza será você.
Passado-se uns quarenta minutos se ouve um chorinho.
A criança nasce fraquinha, porém viva.
A parteira limpa o bebê e as médicas cuidam da mãe que sangra muito...
- Nunca vi tanto sangue!
- Me ajuda a secar tudo.
Vai dar certo, vamos Antonella, sua menininha é linda!
Ela precisa de você...
Algum tempo depois.
As médicas deixam o quarto com seus aventais cheios de sangue.
A mãe de Antonella olha para às duas que estão exaltas.
- Ela morreu!
- Não, não morreu!
Temos que esperar ela acordar da anestesia e mantê-la quieta e aquecida.
- Na verdade, senhora.
O tempo dirá se ela vai conseguir sobreviver.
Se tivéssemos chegado umas duas horas antes ela teria mais forças.
Agora, teremos que lutar contra a fraqueza e a infecção.
Vamos aguardar e orar, é somente o que podemos fazer...

Maria Boaventura.

Espinhos da LiberdadeWhere stories live. Discover now