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Não chovia, e por algum milagre o céu estava limpo, mesmo com o chão escorregadio de toda a água anterior. O frio, entretanto, era cortante. Ponderou se o total de pessoas ali seria maior se a tragédia fosse anunciada, se fosse alguma doença terminal que lhes daria tempo de se preparar ao serem chamados tão repentinamente ali.

Os sapatos de todos brilhavam, fosse graxa ou água, pretos como suas calças, como seus ternos, e algumas luvas e cachecóis. Rostos conhecidos. Colegas de trabalho do pai e seus filhos, seu médico de infância... Sequer os havia escutado na tortura que era ouvir os pêsames a cada cinco segundos, e os mais espertos, ou dedicados, ou delicados — ou o que quer que fossem — torturariam um pouco mais por uma mensagem telefônica ou virtual, fosse ou não pública.

Enquanto o pastor dizia coisas que Denis deixava para o vento escutar Nicolas mantinha a mão firme na sua, e todos ao redor poderiam atestar a sua presença ao menos naquele momento. Soluçou. Eram apenas seus antigos vizinhos, da mercearia, do primeiro estágio, da escola, os mais antigos do hospital... Não estavam ali por ele, e sim com ele, reunidos em apenas uma cerimônia pra quem todos apenas esperavam ser vistos lhe lembrando.

E aquela mulher mantinha os olhos baixos, fixados nele ao notar que finalmente havia sido vista, como esperava. Se fosse lembrar de alguém quando tudo terminasse e os anos avançassem, seria dela, a única que poderia assegurar ter visto.

Seus pés se moveram mais rápidos do que poderia pensar, antes mesmo que a mão dolorida de Nicolas recuperasse a firmeza para o segurar. Logo perdia-se entre tantos que tinham os ombros na altura da sua cabeça, uma maré negra que o sufocava até alcançar a grade que aterrou-o novamente onde estava, e não para a cova onde a imaginação o obrigava a seguir. Respirou fundo, enjoado.

— Como está, Denis?

Não respondeu.

— Arg! Você continua terrível...

— O que faz aqui? — questionou ainda inseguro de lhe lançar mais um olhar do que o necessário.

— Acha que eu não sei onde meu filho está? Acha que sou irresponsável como o seu pai? — questionou. — Acho que não preciso contar com sua presença, se sequer pode estar perto do seu pai nos seus últimos momen...

— Então não conte — retrucou ao implorar que não o fizesse.

Ela tinha um novo penteado, notou. Por isso não reconheceu de imediato. Uma maquiagem diferente, e uma roupa que nunca imaginou que vestiria. Todavia, era o mesmo olhar.

— Uma criança terrível que tornou-se um adulto deplorável. O que esperar de você... Não muito. Sequer lembra quem eu sou...

— Foi você — acusou. — Você esqueceu quem éramos. Quem eu era... — declarou hesitante, intimidado pelo olhar que o fez desviar os olhos.

— Como se valesse tê-lo ao meu lado... Você me colocou na cadeia anos atrás — lembrou ferina. — Há uma semana seu pai se reuniu comigo. Eu queria apenas conversar com você, e ele não permitiu facilitar, como se você fosse incapaz o suficiente pra decidir sozinho.

Calou-se um instante, aspirando fundo a fumaça do cigarro.

— Destruiu o casamento dos seus pais e agora o matou — declarou conformada. — O fato é que não se pode esperar uma boa árvore de uma semente estragada. Se eu imaginasse o que se tornaria eu sequer daria a luz...

Aproveitou o portão próximo e saiu, tomando o carro de um amigo que a aguardava.

Não tinha mais lágrimas, e os nós haviam sido todos engolidos, para alívio da garganta. Restava apenas aquele emaranhados de nós no estômago dolorido, sufocado. Arrancou a gravata desalinhando o cabelo, e caminhou para fora.

Até Onde Posso Alcançar...Onde histórias criam vida. Descubra agora