𝟏. "𝑼𝒎𝒂 𝒎𝒐𝒄̧𝒂 𝒄𝒐𝒎𝒐 𝒆𝒖".

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                                   Sâmia
 

Terça-feira, 16 de Abril de 1957.

   Movi o pequeno potinho de vidro redondo transparente, que eu segurava com cuidado, deixando a luz do sol que entrava pela janela aberta do meu quarto refletir nele. Observei as folhas secas das ervas dentro, pensando no momento em que o ganhei e se precisaria usá-las. Uma moça como eu, falei baixinho, sentindo as lágrimas correrem pelo meu rosto. Quem entenderia uma moça como eu?, questionei-me, sentada no chão de madeira escura.
  Uma moça como eu, sussurrei, olhando para o teto. Esperava que aquele calor suave me fizesse sentir melhor. Quando é que eles vão me entender?, murmurei, para o nada, irritada. Nem era tão difícil! Tudo começou quando minha madrasta falou, no almoço passado, que temia haver um matador de aluguel aqui na região, medo esse compartilhado pelo meu pai, graças ao boato que ouviu de um jornalista bêbado numa festa da nossa empresa, anos atrás.
   A vítima da ocasião era um pequeno empresário do ramo têxtil que foi encontrado nu, amarrado de ponta cabeça no lustre da sala na casa onde morava, cheio de cortes no corpo, e uma poça de sangue no chão.
  Não conseguia tirar da cabeça as expressões de espanto da minha família, assim que mencionei que certas mortes podiam ser benéficas para alguns. Para variar, meu pai repreendeu-me, dizendo que uma moça como eu não devia achar aquilo certo e tomaria conta do que eu andava lendo, daqui para frente.
  Eu apenas lia os livros da nossa vasta biblioteca, que ele e todo mundo conhecia muito bem. E o seu olhar, juntamente com os dos outros que comiam conosco, me fez sentir a aberração da casa, como sempre.
  Não questionei; apenas desviei o foco dele e empurrei a comida, com o nó na garganta apertando, e tentei fingir que não era nada. Eles não entenderam o que quis dizer, como sempre. Me retirei, após a sobremesa, e sentei em frente ao espelho da penteadeira do meu quarto, escovando o meu cabelo, tentando sentir um pouco de conforto.
  Uma moça como eu, uma moça como eu, sussurrei, para o cômodo vazio. Só pensei exatamente o que uma moça como eu pensaria, concluí, no silêncio. Porém, se voltasse lá e explicasse isso, resultaria em mais olhares chocados e repreensivos.
   Minha avó sempre falava que, quando fechamos os olhos, enxergamos o que há dentro de nós, então o fiz, por um tempo, ouvindo apenas a minha respiração calma. Nunca gostava do que via, e se tinha algo de bom, tinha sumido em algum cantinho do meu ser. Sempre que o que tinha em mim transparecia, as pessoas se assustavam e sentiam medo, mantendo uma distância considerável, tecendo comentários maldosos.
  Uma nova música começou a tocar no disco do Elvis, que coloquei no instante que acordei, me despertando dessa lembrança ruim, e levantei do chão, indo até a escrivaninha onde o diário que minha avó me deu aguardava aberto, com as páginas em branco. Lembro bem do dia em que o ganhei.
   Eu tinha uns 9 anos e não ligava muito para escrever. Sempre conseguia me lembrar de tudo, por isso não julgava necessário. Faz uma década que não tocava nele, até o dia de hoje. Ela já faleceu, uns anos atrás, mas sempre me disse que era importante registrar certas coisas. Vai te ajudar a aliviar o coração, repetia, e agora sei que estava certa.
   Cedi e sentei-me, com o vento outonal refrescando o cômodo, e comecei escrevendo o que houve ontem, acrescentando a mais recente notícia, dada pelo meu paizinho e minha madrasta, na hora do jantar, de que eu ganharia um guarda-costas. Logicamente, aquilo me enfureceu, e ainda estou tiririca com isso tudo.
  Os amo demais, assim como os meus irmãos, mas um guarda-costas me seguindo o tempo todo era a gota d'água! POMBAS, QUE ÓDIO!, escrevi em letras garrafais. Óbvio que prezo o seu zelo pela minha segurança, mas aquilo já era demais. Não queria um estranho na minha sombra. Melhor dizendo, o estranho era a sombra.
  Olhei para o porta retrato, à minha esquerda, onde eu abraçava a minha avó numa foto. Quanto tempo levou, Sâmia?, me perguntou, numa lembrança estranha de quando eu tinha 11 anos. Só 7 minutos, vovó, falei, nervosa, olhando o relógio no meu pulso esquerdo, enquanto ela encarava tensa o corpo sem vida do meu avô, debruçado sobre a mesa de jantar.
   Os que não cumprem as promessas que fazem são traidores, Sâmia, então sempre cumpra o que prometer, falou, me olhando fundo. Abandonei esse devaneio, guardei o potinho no cofre muito bem trancado, dentro do meu armário, arrumei a minha maquiagem e desci, na hora de sempre, para o café da manhã, e encontrei papai andando no corredor com o jornal em mãos, conversando com o meu irmão mais velho, Miguel.

Hasan    Where stories live. Discover now