𝟖𝟏. 𝑷𝒐́𝒔 𝒇𝒆𝒔𝒕𝒂, 𝒑𝒂𝒓𝒕𝒆 𝟏.

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Segunda-feira, 10 de junho de 1957

                                 Samir

  Eu não sabia quantas horas haviam se passado, por causa da dor de cabeça insistente e do céu que começava a clarear bem no momento em que ouvi um chacoalhar de chaves, seguido do guarda que apareceu e me levou até uma sala com uma mesa simples e duas cadeiras, aonde um homem engravatado, de meia idade, aguardava com uma pasta.

— Samir, eu lamento muito pelo que te aconteceu. — ele começou, ao trazerem um copo de água e me entregarem — Sou Abelardo Santos, o advogado do doutor Alfredo e seu também. — apresentou-se, com um sorriso, apertando a minha mão e indicando a cadeira para me sentar — Já estou providenciando os papéis para que responda em liberdade. — começou, depois que me ajeitei e o guarda saiu.
— Não vão me deixar sair, ele era muito rico e sou um bagaça, uai! Eu não fiz nada, juro que não fiz! Nunca machucaria o senhor Daniel!
— Acredito em você, jovem. — afirmou, com brandura, e abaixei o olhar, tentando parecer triste — Meu Deus, você está mais machucado do que eu pensei!
— Ele me agrediu sem razão nenhuma!
— Mas o Daniel não era formado em nenhum tipo de artes marciais, apenas tinha porte de arma. Porque você não revidou, já que é formado? E sei que trabalha armado o tempo todo. Porque não atirou?
— Eu já disse: não queria machucá-lo! Só a tirei do quarto e ele ficou lá, bebendo. Ele me esfaqueou e só o empurrei. — menti, e notei o seu olhar descer até os nós nos meus dedos, com alguns arranhões, e os curativos nos braços.
— Entendi, rapaz. Escute, vou fazer de tudo para sair daqui o mais rápido possível, o que devo conseguir, já que você nunca cometeu nenhum crime.
— Obrigada, muito obrigado mesmo! Eu posso fazer uma ligação?
— Claro que sim, mas primeiro tem que me dizer exatamente o que aconteceu naquele quarto.

  Comecei a narrar as mesmas coisas que falei para o pai, porém detalhadamente, o quase levou quase uma hora. Conforme eu falava e ele fazia algumas anotações, notava um certo desconforto, principalmente ao exagerar nos falsos relatos de violência e surtos do pulha falecido. Aparentemente, ele acreditou, graças às lesões no meu corpo e, assim que partiu, dei o telefonema que tanto precisava.

— Bom dia, senhor Benedito. É o Samir. — comecei, falando baixo, ao gancho, no corredor, com o guarda alguns metros de mim.
— Pelo amor de Deus, homem! O que te deu na cabeça para fazer uma coisa dessas! — questionou, aparentemente sussurrando, do outro lado da linha — Faz ideia do quão importante o Daniel era?
— Eu apenas cumpri as ordens que recebi, de proteger o que era importante. Mas agora preciso da sua ajuda.
— Minha ajuda? Ficou louco? Não tenho nada a ver com isso!
— Estou te dando a oportunidade de renegociar a sua dívida comigo. É o seguinte: peça para aquele seu amigo juiz me tirar da cadeia e encerrar o caso. Alegue incêndio criminoso seguido de um suicídio, porque tem bastante provas para isso, e acabe com tudo. Eu não vou a julgamento.
— Você matou um figurão! Como espera que eu faça um absurdo desses?
— Se conseguir, só precisará se preocupar com os juros do que me deve.
— Samir, ele não é tão fácil de convencer.— ele continuou, depois de alguns segundos mudo.
— Se ele não quiser que a esposa saiba do seu gosto por adolescentes, é melhor me ajudar. Creio que ele possa resolver tudo ainda hoje, o que será fácil, já que mora aqui no Rio. Também vai mandar pra imprensa uma carta dizendo que você presenciou um acesso de loucura do Daniel. Invente qualquer coisa, que eu farei o restante.
— Certo, Samir. Eu darei o meu melhor.
— Obrigada, senhor. Sabe que poderá sempre contar comigo.

  Desliguei e, por incrível que pareça, pouco antes do meio dia, meu advogado retornou, para pegar mais detalhes e surpreendeu-se com uma carta do tal juiz ordenando a minha soltura. Depois de entregar meu passaporte e qualquer documento que me ajudasse a fugir do país, fui liberado.
  O advogado levou-me até em casa e disse para não sair de lá, pois a imprensa já estava fazendo um caos com o ocorrido. Obedeci e meus pais receberam-me aflitos com um abraço apertado, seguidos da minha irmã e do marido.
  Contei por alto o que aconteceu, jogando a culpa do incêndio no Daniel, e os tiros dados pela Layla, o que chocou a todos porque ninguém sabia do seu retorno ao Rio.
   Fui para o meu quarto, trancando a porta, deixando o silêncio me rodear, até entrar no banheiro e me enfiar no chuveiro, torcendo para a água quente lavar toda a culpa que eu sentia pela situação da minha amada.
  Saí e refiz os curativos, caindo na cama, com o corpo dolorido e o cheiro da fumaça e do sangue que não me deixavam em paz. Agarrei o travesseiro, em posição fetal, com o colar dela entre os dedos, numa dor sufocante. Me perdoa, por favor, me perdoa!
  Levantei agoniado e saí de casa, desembestado, com a minha mãe me chamando e entrei no meu carro, que meu pai buscou na mansão pela manhã, graças a ajuda da Matilde, e voei até aquele hospital, onde encontrei-a chegando para a visita. Implorei muito que me deixasse vê-la, e a mulher acabou cedendo, a contragosto.
  Identifiquei-me na recepção e peguei um crachá de visitante, seguindo a enfermeira até o quarto certo. Bastou colocar os olhos nela que desabei, correndo até a cadeira do seu lado direito e segurando na sua mão pequena.
Respirava devagar, sem nenhum auxílio, com as sobrancelhas levemente franzidas, e notei a palidez da pele, além dos curativos no ombro, embaixo da camisola hospitalar.
  A enfermeira mediu a sua temperatura e mencionou que a febre ainda não tinha abaixado, mesmo após a medicação, o que desesperou-me.
  Encaixei as mãos no seu pescoço, do mesmo jeito que fez comigo, na entrevista, e senti que estava mais quente do que o normal. Odiei vê-la deitada naquelas condições, porque ali Sâmia estava realmente frágil e tudo por minha culpa.
  Sim, isso é tudo minha culpa. Coloquei a palma da sua mão contra o meu rosto, e senti uma lágrima tocar o calor dela, confortando-me um pouco.

— Meu amor, sou eu, o Samir. — comecei, depois que a enfermeira saiu — Por favor, abre o olhos! Eu te imploro, abre os olhos! Me perdoa, nunca quis que se machucasse! Isso é culpa minha! Eu não devia ter ido tão longe, e não faço ideia de onde ele tirou aquela arma! Devia ter imaginado que o Daniel tinha uma, já que ele praticava tiro ao alvo! Sinto muito, meu amor, sinto muito por não ter pensado na possibilidade de... Vou tentar consertar tudo, fique tranquila, só não morra, por favor! — implorei, engasgando com o choro —Prometo nunca mais derramar uma gota de sangue sequer se isso te fazer voltar para mim. Por favor, meu bem, acorde! Nunca se esqueça: meu amor por você é infinito, até o último suspiro.

  Observei-a mais alguns segundos, tão adormecida e acariciei o dorso do seu nariz, do jeitinho que sempre fazíamos, porém notei que sua expressão suavizou, o que alegrou-me. Fingi que era por minha causa e parti, devido o fim do horário de visitas, voltando para casa e a solidão do meu quarto, de onde não saí mais.
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Hasan    Where stories live. Discover now