𝟖𝟒. 𝑷𝒐́𝒔 𝒇𝒆𝒔𝒕𝒂, 𝒑𝒂𝒓𝒕𝒆 𝟒.

18 8 2
                                    

                               Samir

— Samir, você não precisa falar com eles hoje. — o advogado tentou me dissuadir, na entrada de uma sala de visitas, segundos antes dos detetives se aproximarem.
— Eu não tenho nada a esconder, senhor. Quanto antes falar, melhor. Estou bem, fique tranquilo. Não sei como retribuir o que o está fazendo por mim. Muito obrigado. — agradeci, tocando no braço dele, e o homem relaxou os ombros.

  Nos acomodamos à mesa que tinha no cômodo, relativamente menor que os da mansão e mais simples. Os homens me olhavam com mesmo olhar suspeito de antes, porém disfarçaram com um sorriso simpático. Estava nervoso, por dentro, porém respirei devagar, para aliviar a tensão.

— Sentimos muito pelo que aconteceu com você. Que bom que o seu rosto desinchou. — o primeiro começou, servindo-se com o café que Matilde trouxe.
— Sim, minha mãe fez umas compressas e sarou. — respondi, tranquilo.
— A verdade, senhor Hasan, é que esse incidente na mansão Bastos foi trágico demais. Quatro pessoas morreram, incluindo uma criança que levou um tiro na cabeça graças à sua ex namorada, Layla Fadel, que se matou, em seguida. Pode me dizer o porquê ela estava na festa?
— Não sei, e não faço ideia de como ela entrou! Não sabia que tinha voltado para o Rio. Olha, senhor, nós não demos certo porque queríamos coisas diferentes. Ela queria voltar para o Marrocos e eu não.
— Não acha que ela entrou armada naquela festa para tentar se vingar? Talvez pensasse que você a trocou por outra moça, tipo a Sâmia.
— A Sâmia? Ficou louco, uai? — soltei, fingindo indignação — Ela era casada! Nunca que eu faria uma coisa dessas!
— Está bem, senhor Hasan. — soltou, indiferente, anotando no caderninho — Como era a sua relação com Daniel Magalhães? Ele era um bom chefe?
— Querem saber a verdade, detetives? O doutor Alfredo me contratou para manter o Daniel longe da Sâmia. Ele sabia que o homem não era confiável, o que acabou se confirmando pelo que houve. Era bem arrogante e me tratava como se eu fosse inferior.
— Agora falemos sobre aquele fatídico domingo. Você conversou com o delegado, mas não entendo porque o seu depoimento ficou tão raso. A cópia não dizia muita coisa. Quer me contar o que houve?
— Eu notei que ela estava sendo agredida. Ouvi algumas discussões, sem contar que ele voltou da lua de mel antes da hora e a abandonou em casa para tratar de negócios em São Paulo. A Sâmia tinha um corte na boca. Ficou muito nervosa quando perguntei a respeito e me fez jurar que não diria nada para ninguém. A dona Madi também percebeu e me fez prometer intervir, se necessário. Na festa, eu fui fazer a ronda e subi até os quartos, como sempre fiz, sentindo um cheiro estranho de fumaça. Ouvi os dois discutindo no quarto dela e ela pediu para abaixar a arma. Então entrei e ele disparou. A Sâmia estava... — engasguei, sentindo as lágrimas chegarem, ao pensar naquela cena horrível.
— Meu cliente vai continuar a conversa amanhã. O evento foi traumático demais e ele não está bem. — doutor Abelardo interrompeu.
— Eu posso continuar, tudo bem. — falei, secando os olhos — Ela estava caída e não conseguia se mexer. O marido só ficava repetindo “agora nunca mais vai ver o seu irmão”, bebendo mais conhaque na garrafa. Aí partiu para cima de mim e me bateu sem razão nenhuma, falando que eu morreria também e o próximo seria o Miguel. Me cortou com uma faca, que não sei de onde saiu. Só o empurrei e o Daniel caiu sentado, mas foi atrás da garrafa. Então peguei a Sâmia no chão e saí correndo dali. Só que a casa já estava pegando fogo. Quando cheguei com ela do lado de fora, todo mundo estava gritando e ouvi disparos. Quando virei na direção do barulho, a Layla estava segurando uma arma e atirou na própria cabeça.
— Porque a implicância com o Miguel?
— Ele e a irmã sempre foram muito ligados e o Daniel era muito ciumento. Que absurdo querer separar os dois! Sempre foi filho único e não aprendeu a importância do elo entre irmãos. Até eu sou apegado à minha irmã gêmea!
— Vamos organizar os fatos: você entrou no quarto, já sentindo o cheiro de fumaça, daí o Daniel atirou na Sâmia, te agrediu, você o empurrou e resgatou a jovem.
— Sim, foi o que eu falei. — confirmei, entediado.
— E cadê a faca que ele usou para te cortar?
— Não sei, uai!
— Uma coisa que não faz sentido: se você tinha posse de arma, sempre andava com ela, além de praticar artes marciais, porque não revidou, quando ele te bateu? Podia ter atirado.
— Eu não queria machucá-lo, só tirá-la dali o mais rápido possível!
— Tem certeza que não usava nenhum outro tipo de arma? Talvez a faca que ele usou fosse sua.
— Não era necessário outra arma e eu não tinha faca nenhuma! Eu só precisava manter a Sâmia em segurança e nem isso consegui. — prossegui, olhando para as minhas mãos sobre a mesa, realmente triste com aquilo — Acho que não fui atento o suficiente.
— Por isso, que veio vê-la, tão cedo?
— Eu queria saber se estava bem. Ninguém nunca se machucou, sob a minha vigilância. Foi a primeira vez que isso aconteceu. — lamentei, tentando afastar o choro.
— Onde machucou os nós dos dedos? — o segundo detetive perguntou.
— Eu também pratico boxe.
— Mas essas lesões parecem tão recentes quanto as que estão no seu rosto. Tem certeza que não revidou e acabou se excedendo, o que impediu o Daniel de sair daquele quarto? Você sabe lutar e saberia apagar alguém facilmente. Talvez seja a razão para ele ter morrido queimado.
— Não, eu não revidei, tenho certeza, senhor!
— É uma pena que a joia dela tenha sumido. Parecia muito cara.
— Talvez alguém tenha achado e guardado. Ela gostava bastante daquele colar. Nunca o tirava do pescoço, não importava o que acontecesse. — mencionei.

   Senti que sorri por um instante, mesmo com o incômodo das feridas, lembrando de quando o coloquei no pescoço dela e o quanto gostou daquilo. Minutos depois, a joia era a única coisa que cobria a sua pele, além do lençol.

— Eu me referia ao anel de casamento. — o outro prosseguiu, e a lembrança daquela porcaria desfez o meu sorriso — Era algo belíssimo. Ela deve ter ficado triste ao perder uma preciosidade dessas. Eu gostaria de poder dar algo assim para a minha esposa, mas não tenho condições, assim como você não tem, não é, Samir?
— O que quer dizer com isso? — questionei, sentindo o ódio queimando por dentro. 
— Talvez você só tenha condições de dar um simples colar de ouro, tipo o que a Sâmia perdeu. Já o Daniel, um homem rico, poderia dar qualquer coisa, como um anel com uma esmeralda gigante. — provocou, e notei o olhar de soslaio do meu advogado que tentava argumentar.
— Desculpe, detetive, mas o que isso tem a ver com o caso? A condição financeira do falecido não tem qualquer ligação com o meu cliente!
— Estou tentando estabelecer um motivo, doutor Abelardo. Pode tê-lo matado por inveja. Quem não quer riqueza, e você trabalhou para homens muito ricos a vida toda, não é?
— Trabalhei, mas não quer dizer que os invejava!
— Eis a minha teoria: você tinha um caso com a Sâmia, ela teve que se casar com o Daniel. Você não suportou vê-la com outro, enlouqueceu de ciúmes e o matou numa hora oportuna.
— Isso é um absurdo, eu não fiz nada!
— Samir, não tem que responder nada! Meu cliente não vai falar mais nada, até porque esse caso não pode ser resolvido com base em conjecturas, que só o que vocês tem!
— Você pareceu preocupado com o colar que a Sâmia perdeu, sendo que ela pode muito bem comprar outro. — o primeiro disse, ignorando o homem — Porque se importar com uma coisa tão inferior?
— Inferior? — rebati, querendo pular no pescoço dele, e notei a sua expressão de sarcasmo.
— Sim, inferior. Não era um colar bem simples que ela usava quando conversamos sobre a Érica, na outra vez? Tinha um pingente de...
— Um cavalo. — respondi, devagar, depois de respirar fundo, sentindo o calor da raiva me aquecer.
— Ah, sim. Bem, não parecia nada valioso, apenas uma bijuteria. Tem uma coisa interessante que queria te contar. Conversei com um colega meu, que está perto de se aposentar, sobre o caso da Érica. Ele é de Belo Horizonte e ficou surpreso quando mencionei o seu nome. Então falou sobre um caso que ele cuidou, faz um 15 anos, de um adolescente que caiu da escadaria da torre do sino, em uma escola muito importante da região. Parece que esse jovem agrediu outro pouco antes de ser achado morto, e esse outro tinha o nome igual ao seu, Samir. Por acaso, era você?
— Era sim, por isso tenho essa cicatriz na testa. Ele cismou que eu queria roubar a namorada dele e me jogou contra o espelho do banheiro. Não sei para onde ele foi, depois disso.
— Não imagino o susto que a sua família deve ter tido. Mas sabe o que chamou a minha atenção nessa história? O fato de que ninguém reparou nas marcas no pescoço do garoto. Ah, ele me mandou uma cópia do relatório e umas das fotos deixava bem clara a existência de lesões por estrangulamento na pele dele. Não sei como ignoraram aquilo.
— Mas o que isso tem a ver com o que aconteceu? Todo mundo disse que ele bateu a cabeça e sangrou até a morte! Eu também podia ter morrido por culpa dele!
— Pois é, mas não morreu, e aqui vai mais uma teoria: os dois discutiram na torre por causa dessa garota, você o empurrou, o estrangulou, depois correu  para o banheiro e simulou o ferimento. Tem que ter coragem para se machucar batendo o rosto contra o espelho.
— Isso não tem cabimento! Samir, não respon...
— Então o assunto foi tratado como acidente e rapidamente encerrado, até porque o falecido era rico, como muitos outros alunos, com desempenho escolar ruim, e um herdeiro do café com um pai influente. Com certeza, não ia querer que a imprensa retratasse o filho dele como um delinquente. E você, Samir, era um excelente aluno, sempre com notas impecáveis, um atleta promissor que sempre vencia as corridas da escola e poderia muito bem sair daquela torre e correr até o banheiro sem ser visto, no horário do almoço, com os corredores vazios e fingir o ataque.

  Lembrar daquilo fez a minha raiva reduzir e dar lugar a sensação de prazer momentâneo que tive depois que ele morreu. Todos acreditaram na minha suposta inocência e logo ignoraram o assunto. Infelizmente, não tive esse sentimento por muitos dias, e a amargura por ser rejeitado pela Lídia tomou conta de tudo.

— Você é muito rápido, e tenho certeza que subiu, começou o incêndio, voltou até o quarto para buscar a Sâmia, só que não contava com o Daniel ali, naquele momento, e ainda mais armado.
— Isso é ridículo! Não incendiei nada!
— Quem duvidaria de você, não é, Samir? E quem faria isso agora, justamente depois de ter salvado a vida da uma jovem ferida pelo marido insano? Quem não te veria como um herói? Porque Benedito Gonçalves, um empresário poderoso, interviu a seu favor?
— Ele foi meu chefe, o que tem nisso?
— E porque aquele juiz ordenou a sua soltura? — insistiu, olhando-me fundo, sério, e precisei conter a vontade de rir.
— Essa conversa acabou! Nenhuma palavra a mais, Samir! Quando tiverem provas concretas, voltaremos a conversar. — decidiu, pondo-se de pé, bruscamente.
— Certo, é melhor conversarmos em outra ocasião. — concordou, colocando-se de pé, calmamente, com o parceiro — Mais tarde, vamos ao funeral do Daniel, caso queiram falar mais alguma coisa. O enterro seria ontem, mas o advogado insistiu em repetir a autópsia. Bem, até  logo, Samir. — despediu-se, com um sorriso irônico.

  Meu advogado saiu para conversar com o doutor Alfredo, depois que eles partiram, e espiei entre as cortinas os homens conversando com a enfermeira que fumava na calçada.
   Consegui ouvi-los perguntando se ela tinha escutado a minha conversa com a Sâmia, mas a mulher negou, afirmando que falamos num idioma que ela não conhecia.
  Ele pareceu frustrado e agradeceu, indo embora, logo após ela acender outro cigarro. Fugi silencioso até o quarto da Sâmia, ansioso para tudo aquilo acabar. Contei rapidamente o que houve e me despedi, com um beijo breve.
  Não era seguro ficar ali, então voltei para casa, sob a orientação do advogado, e sentei na cama, com o colar dela entre os dedos, refletindo sobre o que o detetive quis dizer com o fato de repetirem a autópsia.
°

Hasan    Where stories live. Discover now