𝟏𝟕. 𝑱𝒐𝒈𝒐 𝒅𝒆 𝑷𝒐́𝒍𝒐, 𝒑𝒂𝒓𝒕𝒆 𝟐.

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                            Sâmia

  Tem um assassino aqui em casa, pensei, lembrando que mal dormi, na noite passada, depois das coisas que falei para Samir, na biblioteca, e também por causa do que ele me disse. Somos monstros. Sentei em frente ao espelho e encarei os meus olhos vermelhos. Pombas, porque me descuidei desse jeito?
   Tentei passar o delineador na pálpebra superior, para melhorar a aparência, doida para voltar para cama. Mas não, eu concordei em jogar Polo hoje, no time de Miguel. Prometi quando ainda tinha alguma chance com Eduardo. Amo esse jogo, e não vou desapontar o meu irmão por causa de um patife qualquer.
  Lembrei da minha avó, ensinando a me maquiar, realçando os pontos fortes do meu rosto. Seus olhos são delicados, deve sempre destacá-los, me disse, em frente ao mesmo espelho no qual me via, naquele momento.
  Naquela ocasião, ela desenhou um traço bem fino e perfeito na minha pálpebra superior, deixando as minhas bochechas levemente rosadas com o rouge. Perfeita, disse, depois que vi o resultado final, feliz da vida. Sorri com essa memória e reproduzi a mesma maquiagem.
   Achei que Samir estava tentando me beijar. A minha cabeça ainda estava uma bagunça. Ele já matou alguém, sussurrei, lembrando das suas mãos tocando o meu pescoço. Ele é como eu. Não senti medo dele, mas não sabia exatamente o que pensar. Não pode ser como eu, não é possível. Não, está mentindo! Só quer me assustar.
   Queria que ele parasse de falar e me beijasse, porém se afastou. Foi melhor, murmurei para mim, não posso atrapalhar o seu trabalho. Me comportei de forma reprovadora, na cozinha. Não devia tê-lo deixado segurar na minha mão. Aquele atrevido e o seu pão com ovo, sorte que estava gostoso! Eu podia ter respondido que ainda sonhava com a Melissa, encarando-me sem vida, porém não consegui. Não era tão fácil admitir aquilo.
  Enfiei o frufru no pulso e desci, esperando que o café melhorasse o meu humor. Me sentia tensa com a expectativa de vê-lo novamente. Eu vi um lado dele completamente sombrio, perigoso e cheio de desejo. Não, ele não me deseja, repreendi-me, está focado no trabalho, não seja tola.
  Finalmente, cheguei na cozinha, e Beatriz me chamou. Passei por trás do Samir e olhei para as costas largas da sua camisa branca. Notei a sombra do desenho de asas, na altura dos ombros, e pensei ser a estampa da camisa de baixo. Sentei ao lado de Miguel, que logo perguntou se o meu pé tinha melhorado.
  Apenas concordei, já que devia ser o que foi dito ao meu pai, sobre a minha ausência. Depois de alguma frases trocadas com o meu irmão, fiz o esforço e encarei Samir, que estava com uma cara estranha. Os olhos de um assassino, refleti, e não consegui trocar uma palavra sequer com ele. Perdi a coragem, depois de ontem.

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  Pudim acelerou, comigo em cima, pelo campo, durante a partida de Polo, e meu irmão se inclinou no seu cavalo para bater o martelo na bola, lançando longe, o que nos garantiu mais um ponto. Quem aquela miserável achou que era para falar com o Samir daquele jeito?, pensei, irritada, ao me inclinar e bater na bola.
   Que se dane se era ex namorada, com certeza, mereceu ser dispensada! Ele precisa de alguém que o entenda. Porque ele ficou vermelho, no estábulo?, me questionei, ao correr e passar pelo Eduardo, que ainda teve a audácia de piscar para mim. Se esse calhorda parasse de se exibir, talvez vencesse.

 —Tudo bem, broto? — perguntou, com o sorriso que antes me encantava, e agora só me causava irritação — Ainda quer remover as pessoas? — indagou, em tom irônico.
— Talvez eu te remova! — respondi, brava, o que o assustou, e acelerei, afastando-me dele.

  Metros depois, ouvi um grito, e automaticamente parei o galope, junto com os outros jogadores. Ao olhar para trás, vi que ele tinha caído por cima da cerca baixa que rodeava o campo, quebrando-a, com a perna quebrada abaixo do joelho, gritando de dor, e o seu cavalo corria sem rumo com a sela torta.
   Apeei e corri para ver de perto; um pedaço da madeira tinha furado o seu braço direito, manchando a camisa verde de sangue. Rapidamente alguns convidados chegaram e o carregaram para a sombra, encerrando a partida de Polo. Levei o Pudim para o estábulo, ainda chocada com a cena, mas ele não estava atento ao jogo, por isso caiu. É bom para ficar esperto.

 
— Sâmia! — Samir me chamou, e logo me alcançou, tirando os óculos escuros.
— Oi! Viu que o Eduardo caiu? — falei, me virando e apontando na direção de onde ele estava deitado, chorando alto, enquanto traziam o carro para o levarem para o hospital — Com certeza, quebrou a perna.
— Sim, uai, mas aconteceu, como deveria. — falou, e o encarei, confusa — Foi a melhor alternativa para ele não andar mais nessa terra, pelo menos por um tempo.
— Como assim?
— Quebrar a perna foi pouco! Queria que aquele marmota tivesse quebrado o pescoço! — afirmou, incomodado, deixando-me gelada — É bom para ele aprender o jeito certo de te tratar.
— Foi você? — perguntei, ainda sem acreditar.
— Esse pulha não te merece. — falou, me olhando tão fundo que me senti atravessada e perdi a fala — Minha função é te proteger sempre, Sâmia. — garantiu, com a voz calma, e senti o coração disparar — Sempre vou fazer o que for necessário para isso. Não precisa me agradecer. Eu levo o Pudim para você.

  O homem se afastou alguns passos, puxando o meu cavalo pelas rédeas, mas me esperou, enquanto eu ainda tentava digerir o que tinha acontecido. Ele fez isso por mim?, pensei, zonza, retornando a caminhada. Não estava com medo, mas não sabia o que sentia. O que mais Samir era capaz de fazer?

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