𝟑. 𝑬𝒏𝒕𝒓𝒆𝒗𝒊𝒔𝒕𝒂.

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                                 Sâmia

— Na verdade, eu também gostaria de um guarda-costas, mas meu pai não acha necessário, porque o nosso bairro é seguro. É um pão duro, isso sim! Pombas, Sâmia, você não tem noção da sorte que tem! — Leonora, minha prima de 20 anos, se queixou comigo, enquanto eu colocava a água para ferver e fazer o chá para os candidatos.
— Aqui no bairro também é assim. Eu sei que papai se preocupa comigo, mas um guarda-costas me sufoca! — gesticulei, aborrecida — Não preciso disso!
— Pois deveria aproveitar! Se escolher um bem bonito, pode desfrutar melhor da companhia dele. — falou, em tom malicioso.
— Pelo amor de Deus, para! Não quero ninguém me seguindo!
— Fique tranquila! O titio não vai escolher um... AH MEU DEUS! — exclamou, de súbito, agarrando o meu braço.
— O que foi?
— Os candidatos! Seu pai acabou de entrar aqui na cozinha com eles! Meu Santo Cristo! Um deles é lindo! Ah, estou bem. — murmurou, usando uma bandeja como espelho.
— Quer parar com isso? — reclamei, tomando o objeto da mão dela — Preciso disso para apoiar o bolo.
— Só queria conferir se estava apresentável. — disse, convencida, ao mexer no cabelo claro — E você devia ter passado mais um pouco de rouge nessa bochecha. Sempre usa esse batom claro. Tem que variar, de vez em quando.
— Não estou incomodada com isso, Leonora. Até porque já estou com maquiagem.
— Pois devia se incomodar. Um dos seus candidatos é um pão, e você poderia muito bem conquistar o coração dele. Nem vai dar uma olhadinha?
— Para que? Logo vou ter que ir lá!
— Bem, se não quiser o bonitão, eu quero! — garantiu, me cutucando — O segundo também é bonito, mas um pouco estranho. Não se preocupe, prima, vou te ajudar a servir. — decidiu, segurando a bandeja com as xícaras e o pote de porcelana com a camomila.
— Vai derrubar isso!
— Confie em mim, sei o que estou fazendo. Tudo para te ajudar, prima.

  Revirei os olhos, aborrecida, mas me conformei e caminhei atrás dela, que praticamente saltitava, com os saltos brancos, balançando os cabelos curtos sedosos. Precisava de um guarda-costas que não fosse insuportável e pervertido. Provavelmente, ela poderia me ajudar nisso, raciocinei. Chegamos na mesa e logo notei qual era o bonitão pelo sorriso largo que abriu para a minha prima.
  Deus, me leve daqui!, pensei, ao colocar o bolo ali e dar a volta para tirar o fio da toalha que estava presa no relógio do segundo candidato, o quieto, que me olhou com um certo pânico. Coitado, não sabia que aquela toalha de mesa era mais velha do que meu pai. Porém o que me assustou foi o calor da pele dele. Quente demais.
   O encarei e percebi que os seus olhos estavam avermelhados. Saí e voltei até o armário de ervas, no fundo da cozinha, e peguei um pote com folhas desidratadas de hortelã. Meu Deus, como ele ainda está de pé com essa febre? Olhei de volta, na direção deles, e notei que o homem me observava e passava a mão na têmpora. Está com dor de cabeça, pensei.
  O outro candidato, o pervertido, estava se oferecendo para a minha prima desde o instante em que ela se sentou. Que ótimo, agora tenho que contratar o moribundo, murmurei comigo. Levei o bule com a água fervente e o eucalipto, colocando o infusor dentro da xícara e enchendo-na para ele tomar. Ele levou o olhar desconfiado do líquido amarelado para mim, mas começou a beber bem devagar. Fui servir os demais e ouvi a conversa fiada do outro candidato.
 
— Servi na guerra, assim como o meu colega aqui, os dois prestes a completar 19 anos. Então fique tranquila, sei proteger alguém como ninguém. E também sei que o doutor Alfredo precisa urgentemente de um guarda-costas.
— Sim, com muita urgência. Que bom, está perto da hora do almoço. — Leonora falou, conferindo as horas no pulso.
— Mas esse relógio é muito bonito! Um verdadeiro primor! — ele falou, e minha amada prima fez questão de esticar o braço para o homem, que logo segurou em sua mão delicada — O doutor disse que estava usando algo assim. É realmente um charme. — disse, acariciando-a.
— Ah, nem é da moda mais! — ela afirmou, sorrindo largamente, mexendo no belo cabelo ondulado — Mas você é muito gentil.
— E facilmente descartável. — não resisti e soltei, fazendo o casalzinho me encarar, céticos; apenas o moribundo achou graça e escondeu o sorriso.
— Eu acho que sei o motivo do doutor querer um guarda-costas. — ele continuou, me ignorando — Deve achar que a filha dele tem um amor secreto por aí. — afirmou, dando uma piscadinha, fazendo minha prima rir alto.

  Eu, com um amor secreto?, pensei. Não aguentei e comecei a rir também, fazendo o pervertido torcer os lábios. Como que ele pode ser tão desatento?

— Mas na verdade, eu amo proteger o próximo. — o pulha insistiu em continuar — Me dedico bastante, sabe? Sou muito bom nessa função e sempre faço tudo com amor.
— Ah, isso é maravilhoso! O futuro guarda-costas tem que ser bem dedicado e muito prestativo. — Leonora falou, com um ar malicioso, e eu revirei os olhos — E sendo daqui de Niterói, facilita para andar pela cidade. E quanto a você, Samir? — se dirigiu para o outro — Já trabalhou aqui em Niterói?

  Então o moribundo se chamava Samir! Bem, ele não parecia brasileiro, mesmo.

— Não, eu sempre trabalhei fora da cidade ou do país.
— Que incrível! Em quais países? — ela perguntou, enquanto eu partia o bolo e colocava nos pratos deles, interessada em saber mais.
— França, Itália e Espanha. Passei por outros, na época da guerra. — contou, depois de comer um pedaço.
— Que bom, você é bem viajado. — falei, surpresa, e ele esboçou um belo sorriso; bonito mesmo, pensei — Fala mais de um idioma?
— Falo sim, o inglês e árabe. Fiz a vigilância de um empresário, até Janeiro do ano passado. Saí porque ele morreu de câncer. Dias depois, fui trabalhar para o irmão dele, até o início de Março desse ano.
— No caso, estamos em Abril. — continuei, estranhando o fato dele enrolar um pouco o R das palavras — Faz quase um mês. O que fez nesse meio tempo?

  Samir desviou o olhar por alguns segundos, pensativo, e eu franzi a testa, desconfiada.

— Tirei um tempo para resolver uns assuntos pessoais. — respondeu, encarando a xícara.
— Se ficou desempregado, não precisa ter vergonha, amigo. — o pervertido falou, debochando, e Samir lançou-lhe um olhar cortante.
— Isso não quer dizer que ele estivesse desempregado! — rebati, irritada, fazendo-o erguer as sobrancelhas.
— A verdade é que você deveria estar servindo o chá, e não se intrometendo na nossa conversa aqui. Se dependesse de mim, não estaria mais trabalhando nessa casa, então, faça o favor de nos servir e saia!

  Leonora e Samir se olharam, assustados. Eu fiz questão de encarar bem fundo aquele petulante desgraçado; quem ele achava que era para falar comigo daquele jeito?, pensei, e minha prima acariciou o meu braço com um olhar de súplica, para me acalmar.
  Dei as costas e voltei ao armário de chás, explodindo de raiva por dentro. Patife dos infernos! Peguei um pote cheio de Trombeta de Anjo, com flores brancas trituradas e levei para a mesa, colocando no difusor dentro da xícara, enchendo com a água quente.
  Precisa aprender com as suas atitudes, meditei. Ele nem viu que o chá era outro. Espiei os demais e notei que Samir me encarava, prestando atenção no que eu fazia. Já estava cansada de ser tratada com desrespeito ou até mesmo como se eu fosse uma aberração, por pessoas de fora da casa, sempre que dava uma opinião mais forte. Senti as lágrimas vindo, mas as segurei. Eu sabia muito bem como usar aquela erva e tive diversas chances de descobrir a dosagem correta.
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Hasan    Where stories live. Discover now