𝟕. 𝑷𝒓𝒊𝒎𝒆𝒊𝒓𝒐 𝒅𝒊𝒂.

42 19 6
                                    

                               Sâmia

Quinta-feira, 18 de abril de 1957.

  Porque ele não me denunciou e porque aceitou a vaga?, me questionei, ainda antes das 7 da manhã, ao devolver o livro que peguei ontem à noite para a estante, na nossa enorme biblioteca. Ele percebeu sim, tenho certeza. Franzi a testa, intrigada. Porque não me denunciou?
  Ouvi um estalo baixo vindo do corredor e olhei na direção da porta, desconfiada. Dei de ombros, já que não era nada e voltei a minha atenção para a prateleira, em busca de algum outro livro, para tentar afastar o pesar que sempre me afligia quando me olham com incômodo, do mesmo jeito que aquele pulha fez.
   Passei um tempo sentindo as lágrimas caindo sobre a fronha, me sentindo um lixo. Quando vão me entender? Porém, o meu pensamento se voltou para o meu novo guarda-costas. Ele não sabe que posso envenená-lo, quando bem quiser? Porque iria querer ficar aqui, correndo esse perigo?
   Mais uma vez, o estalo ecoou, me incomodando e, dessa vez, senti a presença de mais alguém aqui. Não é nada, estou ficando paranóica, igual ao papai, murmurei. Decidi ir até a porta; o cheiro do café sendo preparado veio da cozinha, despertando o meu estômago. Finalmente, parei sob o portal e olhei para a minha direita, não vendo nem ouvindo ninguém. Sua boba, desconfiando da própria sombra, pensei.

— Bom dia, Sâmia. — Samir falou, atrás de mim, e dei um pulo, com o coração na boca.
— MEU DEUS DO CÉU! — falei, com as mãos sobre o rosto — Ai, que susto! — soltei e pus a mão sobre o peito, nervosa.
— Desculpe, não quis te assustar.
— Ai, Jesus! — disse, rindo, em seguida — Eu me esqueci que estava na casa! É que ouvi uns barulhos e... Que horror, me desculpe por esquecer. — pedi, e ele fez uma cara estranha.
— Tudo bem, fique tranquila. — falou, sorrindo rapidamente — Eu vi que estava aí dentro e não quis incomodar, já que nem são 7 horas ainda.
— Nossa, que horas você chegou aqui? — perguntei, olhando o relógio no pulso.
— Umas 6 e pouca.
— Não comeu nada ainda? — ele fez que não, com a cabeça — Nossa, vamos logo para a cozinha! — falei, andando, com ele me seguindo — Por acaso, o meu pai falou que precisa começar a trabalhar tão cedo? Eu só apareço às 7 horas.
— Ele falou que seria a hora que você dissesse.
— Ah, claro! É às sete, mesmo. Pode me encontrar na cozinha. — expliquei, mexendo no cabelo, encarando-o, e ele aparentemente entendeu — Só começo o dia depois do café. A mesa da cozinha é território livre. Todos comem juntos, então não se acanhe. É mais fácil descer por aqui. — falei, abrindo uma porta, saindo num corredor pouco iluminado que, obviamente, ele estranhou — Preciso te ensinar a andar pela casa. E quem te disse aonde eu estava?
— O seu irmão, que passou por mim, na entrada.
— Linguarudo. — murmurei, e notei um sorriso rápido no rosto dele — Preciso te avisar logo: vou passar o dia com a Madi no salão de beleza, já que a festa o papai é de noite. Acho que não vai ter muito o que fazer, hoje. Aproveite para passear pela casa. Pronto, chegamos. Bom dia, pessoal. — falei, ao passarmos por uma segunda porta, dando acesso a outro corredor, mais iluminado, aonde ficavam os quartos dos empregados, e entrarmos na cozinha — Fique à vontade. — disse, indicando a cadeira, para que se sentasse e comesse.

  Estava torcendo para o penteado que escolhi para a festa ficasse bem em mim. Senti uma onda de alegria ao lembrar que Eduardo viria. Ele trabalhava na empresa parceira do meu pai. Já conversamos várias vezes, e sempre foi muito agradável e inteligente. Sem contar que ele era lindo, com os seus cílios longos.
  Sempre me ouvia com tanta atenção e parecia me entender tanto! Acho que ele era o homem certo! Caminhei até o fundo da cozinha, para pegar a bandeja com o pão quentinho, contente com essa possibilidade, e Matilde mexeu comigo.

— Fiquei surpresa de você ter aceitado um guarda-costas.
— Não tinha muita escolha.
— Olha, até que ele é bonitão. — cochichou, olhando de soslaio na direção dele — Meio estranho, mas bonitão. Deve ser porque é muito quieto. O outro candidato já deve ter saído do hospital. O coitado teve uma intoxicação grave.
— Descobriram o que fez mau? — perguntei, fingindo não saber.
— Não, mas a hipótese era algo estragado que ele comeu por aí. Bem, pode deixar que eu levo esse pão para o Samir.
— Já vou me sentar, pode deixar que eu...
— Não, não, Sâmia. — me interrompeu, com um ar malicioso — Eu vou servi-lo, faço questão.
— Matilde, Matilde, está interessada no meu guarda-costas? — ela apenas abriu um sorriso largo, em resposta — Olha, a senhora está bem espertinha, hein! Espere aí! — falei, me aproximando para sentir o seu cheiro — Está tão perfumada por que? — perguntei, cruzando os braços, com uma expressão debochada.
— Oras, porque ele é solteiro. Sâmia, deixa te explicar uma coisa: eu estou viúva e não morta. — garantiu, com uma piscadinha, que me fez rir, para logo depois pegar o pão e levá-lo para Samir, em passos graciosos.

   Ela o serviu e ele levou o olhar na minha direção, desconfiado, e eu apenas balancei a cabeça, levemente, arqueando uma sobrancelha, e creio que me entendeu de imediato, pela sua expressão de surpresa. Porque não me denunciou?, pensei, mais uma vez, antes de resolver sentar de frente e sanar a minha fome.
°

Hasan    Onde as histórias ganham vida. Descobre agora