𝟕𝟖. 𝑭𝒆𝒍𝒊𝒛 𝒂𝒏𝒊𝒗𝒆𝒓𝒔𝒂́𝒓𝒊𝒐, 𝒑𝒂𝒓𝒕𝒆 𝟐.

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                                Sâmia

  Encarei-me no espelho, conferindo a minha maquiagem, tensa com o que estava por vir. Acabaríamos com tudo naquela noite, e não podíamos fracassar em absolutamente nada. Então, a porta secundária se abriu e Samir entrou, trancando a outra, em seguida. Eu corri até o cofre e peguei a faca que me deu, dando-lhe, deixando-o confuso, encarando-me fixo.

— Ela pode ser necessária. Talvez não possa fazer barulho ao acabar com ele.
— É verdade, nem tinha pensado nisso. Você está um lindo cisne! — disse, acariciando o meu rosto, aquecendo-me toda — O seu marido está perambulando no jardim, com um charuto na mão, por isso não vou demorar.
— Tudo bem. Sente aqui, acho que consigo te fazer um cisne também bem rápido. — falei, puxando-o para a cadeira em frente ao espelho — Gostei das penas brancas na sua roupa. — elogiei, e ele apenas sorriu, enquanto eu contornava os seus olhos com o delineado preto — Todas as lareiras do andar superior estão acesas, e vamos conseguir provocar o incêndio, como planejamos.
— Ótimo. Vou dar um jeito de levar o Daniel para lá e não se esqueça de sair daqui, por favor. Banque a esposa preocupada, eles vão amar. — ele completou, encarando-me, depois que finalizei, e fiquei encantada com o seus olhos destacados — Sua família não vem, não é?
— Infelizmente, não. Meus pais já tinham compromisso e a Zaina está passando mau desde cedo. Muito enjoo e indisposição. — contou, com um ar debochado, e fiquei contente com a notícia — Só a tia Jamile que não deu resposta, e talvez nem dê. Melhor eu ir, nos vemos depois. — avisou, dando-me um beijo lento, que foi a injeção de coragem para o que estava por vir.

   Daniel apareceu poucos minutos depois e descemos para a minha festa, que ficou bela, porém mais extravagante do que eu gostaria. Meu marido fez questão de ostentar a sua riqueza e generosidade. Não me preocupei tanto, até porque logo veria tudo reduzido a cinzas.
  As únicas coisas que realmente amei foram a minha fantasia, o bolo da Matilde, que implorei para manter a decoração sutil, e a roupa do meu amado, discreta, com algumas penas brancas no bolso do paletó e a maquiagem escura ao redor do olhos que eu tanto amava ver e conseguia enxergar até mesmo de longe. Assim como o cisne, ele era belo por natureza e fiel até a morte.
  Todos diziam que eu parecia tranquila, mas por dentro a ansiedade me corroía, então fugi para perto da piscina, com o Samir, que comia alegre o primeiro pedaço de bolo que mandei separarem. Rapidamente, envolveu o meu rosto entre as suas mãos, acalmando-me, sussurrando em árabe que tudo daria certo.
  Jurei que o amava, assim como ele, que disse estar na hora de acabar com o problema, aproveitando a distração coletiva causada pela embriaguez. Incentivei até os empregados a beberem um pouco, dando-lhes algumas garrafas de champanhe de presente.
  Contei sobre os documentos que Daniel me deu, nos despedimos e subi as escadas, apressada, porém dei de cara com o meu marido, cheirando a bebida, e me puxou para o quarto, confessando que sabia sobre mim e o Samir.
  Eu não fazia ideia de quem nos viu e contou para ele, porém aquilo me preocupou. O plano não podia dar errado, e o fato de ameaçar o meu guarda-costas, deixando-me sozinha, em seguida, provavelmente para encontrá-lo e fazer um escândalo seria péssimo para nós.
  Então fui até o cofre, pegando o papel do divórcio, supostamente um presente dele, e assinei. Eu não ia sair e deixá-lo impune, por atrasar a minha vida. Guardei de volta com o documento da dívida, meditando na sua utilidade futura.
   Saí e apressei-me, vendo o Daniel vir com o Samir, no corredor, e não recuei, ciente do passo que seria dado pelo meu amado. Corri até o sótão, onde eu tinha escondido num canto, embaixo de umas cobertas, dois galões de gasolina que peguei escondida na garagem mais cedo e uma caixa de fósforos.
  Derramei um em tudo que estava no caminho, incluindo as paredes de madeira antiga. Assim que segurei firme os fósforos, ouvi a porta se abrir e um estalo estranho atrás de mim.

— Te achei, sua prostituta! — Layla falou, orgulhosa, tirando a máscara negra do rosto com uma mão e segurando a arma com a outra, assim que virei na sua direção.
— O que faz aqui? Quando você voltou?
— Não importa, Sâmia. Fiz um esforço enorme para estar aqui e ter a satisfação de ver o seu marido te humilhar na frente de todos! — respondeu, com um sorriso.
— Está falando do que? Sai da minha casa agora! Por acaso, pulou o muro?
— Ora, ora! A riquinha não sabe?
— Você roubou o convite da Jamile? — questionei, reparando no seu vestido cinza que com certeza já vi a tia de Samir usando.
— Não interessa! Eu sei que o Daniel te bateu, no dia da festa junina, o que foi mais do que merecido por traí-lo bem na casa dele!
— Você precisa sair daqui, Layla! Agora! — alertei, me aproximando lentamente dela — É perigoso ficar nessa casa!
— Já não tinha um homem tão rico e ainda precisava tomar o meu? Eu alertei o Daniel e ele simplesmente me ignorou! Vim até o jogo de Polo só para isso, o que foi uma perda de tempo!
— Layla, abaixa a arma. — pedi, com calma.
— Teria uma vida boa ao lado do Samir. Minha reputação dependia disso! Eu era a esposa ideal, tinha a cultura e o idioma no sangue! Sou bonita, jovem e descendo de um povo antigo e nobre. Só que então ele preferiu jogar tudo fora por causa de uma pirralha brasileira de um país que nasceu ontem! Você não sabe de nada sobre ele, é apenas um passatempo que vai matá-lo! — reclamou, com os olhos cheios, chacoalhando o revólver para mim.
— Me escuta e abaixa isso, por favor. — insisti, notando a suas mãos trêmulas, segurando a arma.
— É uma mimada gananciosa, e espero que o seu marido te mate e case com outra bem depressa, assim nem o Samir vai te ter! Você se deitou com ele no dia do seu casamento com outro! É nojenta! Vai negar isso? CONFESSE! — ordenou, com as lágrimas caindo.
— Abaixa a arma, Layla!
— CONFESSE! Ele ama você?
— Sim, desde sempre...
— Cala a boca!
— Desde o primeiro instante que colocou os olhos em mim...
— CHEGA!
— E desde a primeira noite na cama dele!
 
  A raiva tomou conta da sua expressão e puxou o gatilho, sedenta, e estremeci, porém nenhum disparo foi feito. Encaramos confusas o revólver defeituoso enquanto Layla ainda tentava disparar, nervosa. Então pulei em cima dela e caímos juntas no chão, jogando a arma longe.
   Recebi um tapa dela, bem forte, sentindo as suas unhas marcarem a minha face ardida. Apertei os olhos com a dor, porém tratei de rolar, sentando por cima da idiota, dando-lhe vários tapas, mais do que merecidos, enquanto Layla tentava desvencilhar, pegando no meu pescoço.
  Acabei com a Érica e posso fazer o mesmo com você, sua desgraçada, berrei, agarrando os seus cabelos, batendo a sua cabeça contra a madeira, tonteando-a. Levantei, observando a tentativa lamentável dela recobrar os sentidos e se arrastar na direção do revólver, que chutei para longe, obrigando-a me encarar.

— Quando vai entender? Você nunca foi uma opção, Layla, só um meio para um fim! Estava mais do que óbvio que o Samir não sentia nada! Ele é meu e sempre será! — reforcei, dando um chute na sua barriga, e ela guinchou de dor, encolhendo-se toda — Você teve a chance de ir embora e evitar tudo isso, mas não, voltou sabe Deus porque! O que achou que aconteceria? Que ele passaria a te amar, num passe de mágica? NUNCA!
— Não... vai ficar... com ele! — tentou dizer, entre um gemido e outro, aparando o estômago.
— Não tenho segredos com o Samir, Layla. Quem você acha que lhe contou sobre o Kaysar? — questionei, e vi a dor tomar conta do seu olhar, de onde fugiram as lágrimas — Devia ter ficado quieta sobre algo tão importante! Eu que dei o chá de hibisco para você não engravidar e estragar tudo! Agora estamos a um passo de conquistar tudo o que queremos e ninguém, nem você ou o Daniel vai nos impedir! Então pegue a sua reputação e dote e vá para o inferno! — terminei, chutando-lhe de novo, e Layla aparentemente apagou.

  Procurei pelo chão a caixa de fósforos, apressada, e peguei todos, riscando e jogando contra a gasolina, vendo o fogo brotar e se espalhar voraz. Pus a minha tiara com penas de volta, que caiu da minha cabeça, e observei a ridícula caída enquanto as chamas lambiam tudo, como uma praga.
   Peguei o galão que sobrou e olhei as caixas com brinquedos antigos, meus e do Miguel, que arrancaram risadas nossas, um dia, e me afastei em direção à porta, pensando naquelas memórias que se tornariam cinzas, muito em breve.
  Pedaços do teto começaram a cair, e senti o calor das labaredas próximas demais, por isso tratei de sair rápido, correndo até os quartos que ficavam no caminho.
  Entrei e despejei um pouco de gasolina sobre os móveis, usando o fogo da lareira acesa, devido a friagem excessiva daquela noite. Rapidamente, as chamas correram para vários pontos do cômodo, assim como nos outros que entrei. Joguei o recipiente vazio no chão do último quarto e corri para o meu, com o cheiro da fumaça atrás, contando os segundos para aquela noite acabar.
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Hasan    Where stories live. Discover now