𝑬𝒑𝒊́𝒍𝒐𝒈𝒐: 𝑨 𝒉𝒊𝒔𝒕𝒐́𝒓𝒊𝒂 𝒆́ 𝒅𝒆𝒍𝒆𝒔, 𝒏𝒂̃𝒐 𝒎𝒊𝒏𝒉𝒂.

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  Fechei o diário, chocada com tudo o que li. Não podia acreditar que a minha família havia sido construída sobre a morte de inocentes. Olhei na contracapa a seguinte frase:

“Cópia de 1996. Os originais são datados de 1957. Os diários da vovó Sâmia, do vovô Samir, da tia Zaina, do biso Alfredo, do Daniel e da Layla, que ela esqueceu aqui no Rio, foram reorganizados nessa cópia para melhor compreensão dos fatos.”

Peguei os outros na estante e li, ainda mais assustada, principalmente ao achar um em que narrava o período após a formatura deles na faculdade.
  Sâmia pegou um pouco dos cogumelos Amanita muscaria que cultivava na estufa, secou, triturou, e misturou no pote de chá que deu para o pai, pouco depois do homem devolver-lhe a faca usada no assassinato do Daniel, que ela guardou como uma lembrancinha.
   O homem começou a ter alucinações em questão de dias, e ela rapidamente se ofereceu para cuidar dos negócios, até ele melhorar. Li um trecho escrito pelo seu próprio punho:

“Aleguei para a diretoria que a morte dos meus irmãos e o atentado que sofri causou-lhe muito estresse emocional. O homem perambulava pela casa, dizendo que o Miguel e a Theodora estavam chamando-o para um passeio na praia.    Então, meu pai concordou em me deixar no comando da Bastos junto com o Samir, por um tempo. Claro que essa melhora não veio, e ele me declarou presidente, quase 6 meses depois, aposentando-se definitivamente. E parei de colocar a Amanita no seu chá, fazendo-o melhorar e acreditar que era graças a rotina tranquila. Meu pai não podia comandar o que não era dele. Já fiquei fora da empresa tempo demais e era a hora certa de agir. Só fiz um favor para ele.”

  Ela e Samir tomaram o controle de tudo, e anexaram a Minério Magalhães à empresa da família. Iniciaram as obras da mansão, e quando terminaram, estava tudo como antes, e Sâmia já esperava o primeiro filho, que nasceu com uma cor diferente nos olhos, fruto da mistura do castanho da mãe e do verde do pai, que todos os descendentes herdaram. Mudaram o nome da casa para Mansão Masdar — palavra em árabe para Origem, e fizeram o mesmo com as empresas, colocando Hasan Empreendimentos na fachada.
  Os diários seguintes registraram anos de prosperidade financeira e artimanhas cruéis deles dois para manterem o poder. Expandiram o quanto puderam, abrindo 6 filiais, que foram dadas para seus 6 filhos cuidarem. Eles só não puderam prever quando as palavras da Jamile se cumpririam.
  Sâmia já estava com cerca de 70 anos e descobriu um câncer avançado, o que causou um abalo gigante em Samir, segundo o último diário.
   Para piorar, os três primeiros filhos começaram a disputar o comando da matriz, já que seu pai afirmou não conseguir cuidar dos negócios sem sua amada flor de Cicuta, um apelido com o significado oculto dos filhos, assim como todas as coisas ruins que fizeram.
  O que ninguém esperava é que esses filhos contratariam assassinos para se matarem e teriam resultado, gerando três funerais coletivos. Mesmo com os seus pais não sendo capazes de mostrarem muito apego à eles, e por isso arranjaram babás capazes disso, o que foi registrado em algumas páginas, ficaram muito tristes com o ocorrido.
Então, a neta mais velha foi nomeada por eles como a presidente da matriz, mostrando-se instruída, sábia e pacífica, como o falecido Miguel, tornando-se a futura matriarca da casa Hasan. O filho do Miguel, João, também assumiu uma das filiais, como parte de sua herança.
   Quanto à Sâmia, sua doença progrediu, aumentando a sua dor, e ela preferiu tomar um chá de Cicuta, para acabar com o seu sofrimento. Então, numa tarde fresca, ela e o marido entraram no seu quarto, na mansão, e tomaram o veneno juntos. Na penúltima página, havia uma mensagem dele, para quem os encontrassem:

“Queridos filhos,
  Perdoem-nos pelo que fizemos. Não fomos capazes de sermos os pais carinhosos que vocês mereciam. Porém, tentamos dar o nosso melhor, e vimos como cresceram sábios, criando os seus filhos com todo amor que sempre quisemos demonstrar à vocês. Continuem sempre assim: amorosos, prósperos, fiéis, priorizando a família, levando uma vida discreta e feliz. Mantenham de pé os três pilares da casa Hasan: lealdade, verdade e bondade.
Sua mãe não estava aguentando o tratamento, e eu não seria capaz de viver sem ela. No nosso casamento, dissemos que nem a morte nos separaria, e fizemos valer esse voto hoje.   Espero que sejam capazes de ter um amor alicerçado em sangue, assim como nós.
Cuidem-se e sejam bons.
Com carinho,
Samir.”

  Eu repeti essa frase por muito tempo, sem saber o real significado. Na última folha, havia outro parágrafo, numa letra cursiva perfeita:

   “Meus avós faleceram no dia 16 de abril de 2008. O engraçado é que foi no mesmo dia em que se conheceram, 50 anos atrás. Vovó Sâmia sempre dizia, sorridente, que eu tinha o jeitinho do seu irmão mais velho, Miguel. Vovô Samir, mesmo com 80 anos, tinha muita energia e vigor mental, o que sempre me surpreendeu, porém sempre implicou com aquilo que ele chamava de “internet”, apesar de sempre usá-la, e a vovó achava engraçado o fato de uma certa cantora loira ter o título de A Rainha dos Baixinhos.
  Seu amor era grande, e creio que só outro importava. Alguns empregados da mansão sempre os encontravam, em momentos de folga, sentados dentro da baia 3 do estábulo, tomando chá de eucalipto e torradas com geleia de amora. Nunca entendemos o porquê ficavam naquele lugar desconfortável e eles nunca contavam o motivo. A verdade é que não imaginei um final diferente para os dois. Agradeço por me nomearem a matriarca. Honraremos o legado da casa Hasan e ela continuará influente, como já é. Descansem em paz, meus queridos.”

  Guardei os diários, pensativa, porém resolvi levar o primeiro para ler novamente. Então percebi o porque a biblioteca era tão aconchegante, com tantas fotos deles dois. Aqui foi onde realmente se conheceram e deram-se conta do quanto se amavam. Calcei os meus saltos brancos e saí, sem entender o que sentia.

— Alteza, o sheik já chegou e a aguarda no saguão. — o empregado informou, ao me ver no corredor e me apressei até lá.

  Abracei o meu avô e ele sentiu que eu não estava bem. Acariciou o meu rosto, olhando-me fundo com os olhos verdes com a íris dourada.

— Se Samir e Sâmia estivessem aqui, o que achariam do fato de eu não ser ruim como eles foram? Tentariam me destruir? — questionei, indicando o diário, e meu avô entendeu de imediato.
— Porque leu isso, meu bem?
— Encontrei por acaso. Porque nunca me disseram, vovô? — perguntei, e ele apenas suspirou — Sou a futura chefe da casa Hasan, era meu direito saber que toda a história que sempre idolatrei era uma mentira! Vivi sonhando em ser como eles dois!
— Era melhor que não soubesse.
— Porque não? Nossa família é solidificada no sangue de inocentes! Eles eram assassinos!
— Talvez perdesse a motivação e abandonasse tudo. Foi necessário, Jordana. — admitiu, o que me assustou — Você, como primogênita, usa o colar com pingente de cavalo, favorito da Sâmia, que ela deu para a sua neta, a sucessora, na véspera da sua morte. Carrega toda uma linhagem no seu sangue e comandará tudo um dia. Seja grata por ter tanto.
— Mas a que preço?
— Querendo ou não, querida, é a sua história.

  Abracei-o e caminhei até às enormes portas duplas, com o eco dos meus saltos brancos sobre o piso de madeira. Lancei um último olhar no retrato ampliado deles dois, no dia do casamento, no alto, acima da porta, e voltei a atenção para meu avô.

— Não, vovô, não sou como eles e nunca serei. Essa história é deles. E a partir de hoje, vou escrever a minha própria, e não será mais uma mentira bonita. Vou fazer qualquer coisa para conseguir. Sinto muito, mas é necessário. — finalizei, sentindo um arrepio ao repetir essa frase.

  Parti sem saber a sua reação, determinada a encontrar o caminho certo para concretizar o futuro que idealizei, e determinação era o que eu mais tinha de sobra, assim como meus ancestrais. Será que eu devia agradecer por isso?
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Hasan    Where stories live. Discover now