𝟖𝟓. 𝑷𝒐́𝒔 𝒇𝒆𝒔𝒕𝒂, 𝒑𝒂𝒓𝒕𝒆 𝟓.

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                              Alfredo

   Ajudei minha filha a sentar num canto discreto da capela perfeitamente enfeitada e lotada, e muitos da empresa vieram dar os pêsames, depositando flores em cima da tampa de mogno do caixão fechado. Fizeram um ótimo trabalho para o corpo não soltar mau cheiro.
  Otávio Valença, advogado do Daniel, escolheu a melhor funerária do estado e cuidou de tudo, devido a falta de parentes dele. Se aproximou do corpo várias vezes, inconformado, com lágrimas nos olhos, fitando Sâmia com aborrecimento, vez por outra.
  Ouvi um burburinho quando Samir se aproximou da porta, tirando os óculos, segurando uma única rosa vermelha, mantendo o olhar baixo. Cumprimentou a Matilde com um abraço e o nosso advogado se aproximou dele com um ar preocupado.

— Tio, ele não devia estar aqui. — Leonora disse, incomodada, depois de me puxar para um canto vazio — Os detetives ligaram para minha casa e disseram que gostariam de falar comigo ainda hoje.
— Fique tranquila, Lea, é só o procedimento. Mas eu preciso que faça um favor. No depoimento, não fale sobre o Samir ter ferido o Daniel. Diga que só o empurrou e tirou a Sâmia do quarto. — pedi, cochichando.
— O que? Só... Quer que eu minta? Mas foi acidental!
— Eu sei, porém não mencione essa parte. Alegue que não se lembra, não ficou perto dele e estava amparando a Madi. Diga que tudo foi tumultuado e não escutou direito, porque estava preocupada com a Sâmia.
— Tio, porque quer acobertá-lo? As provas estão a favor dele, vão libertá-lo!

  Pensei na Sâmia, hoje cedo, depois que ajeitei o casaco nos seus ombros, ainda deixando à mostra o braço imobilizado sobre o vestido preto simples. Faça de tudo para inocentá-lo, por favor, ele apenas me salvou, pai, implorou, emotiva, e jurei fazer o que fosse para isso acontecer.
  Acreditava na bondade do rapaz, e sei que seu excesso naquela noite foi apenas fruto do zelo pela segurança dela, algo que eu mesmo pedi para ter, na entrevista.
  Porém, naquele dia, eu não sabia o que era, mas ver o Samir se aproximar do caixão, depositar a rosa sobre ele e respirar fundo, como se aquele gesto tirasse um peso dos seus ombros, me deu uma sensação muito ruim, o que só piorou com a impressão que tive de um sorriso querer moldar os seus lábios. Foi acidental, claro que foi, refleti.

— É minha culpa a Sâmia ter se machucado. — respondi, segundos depois — Se não fosse o meu vício, esse casamento nunca teria acontecido. O Samir é a razão da minha filha respirar hoje. Devo muito a ele e vou fazer de tudo para inocentá-lo.
— Eles dois eram amantes, tio! Nunca percebeu nada? — indagou, sussurrando de volta.

  Minutos depois, Sâmia levantou com cuidado, pegando uma rosa de um dos arranjos, também vermelha, e pôs sobre o morto. Ela retirou os óculos e o encarou por uns instantes, pensativa, porém se afastou, deixando a flor se destacar junto com a do guarda-costas, no meio dos lírios e cravos brancos.
  Notei alguns olhares estranhos nela, mas sinto que a encarei da mesma forma ao notar que abaixou o olhar, prendendo o sorriso, disfarçando ao arrumar uma mecha de cabelo atrás da orelha. Não compreendi o porque daquela reação, principalmente diante do corpo do homem que jurava amá-la e tentou matá-la. 
  
— Não, querida, eles são apenas amigos. Sâmia é apegada à promessas e nunca trairia o Daniel. — continuei, sentindo uma aflição interior.
— Tio, por favor...
— Ela jurou no casamento fidelidade, entre outras coisas, e o Samir é extremamente profissional. Nunca que ele quebraria a minha confiança dessa forma.
— Nunca se perguntou o que aconteceu naquele tempo que eles ficaram no estábulo, durante o noivado do Miguel?
— Não, e eu confio nele. Devia confiar também e não duvidar tanto da sua prima.

  Minutos depois, os coveiros vieram e carregaram o caixão, já que ninguém se atreveu a ajudar. O cortejo seguiu silencioso, e caminhei a uma certa distância da Sâmia, sem que notasse, até o instante que ela virou e olhou fixo na direção do Samir, andando um pouco atrás, deixando o vento mover os cabelos escuros.
  Não sei que mensagem ela tentou passar, contudo ele entendeu claramente, e esboçou um pequeno e breve sorriso que durou só um segundo, colocando os óculos no rosto.
  Aquilo só aumentou a suspeita lançada pela minha sobrinha. Porque eles não parecem tristes?, questionei-me, sentindo o pânico crescer, e piorou quando o caixão finalmente desceu na cova e eles voltaram a trocar esse mesmo olhar.
  Eu sei que a minha filha não queria esse casamento, mas trair o Daniel e planejar a sua morte com o guarda-costas era inconcebível! Não, ela nunca faria isso, convenci-me.
  Depois da última pá de terra sobre a cova, os presentes partiram, e Samir veio até mim, com a mesma expressão triste de hoje pela manhã. Otávio fez o mesmo, só que visivelmente bravo.

— Como se atreve a aparecer aqui, depois do que fez, seu assassino? — indagou, entre o dentes — Veio zombar de um defunto?
— Otávio, por favor, vamos deixar a polícia resolver isso. — intervi, enquanto Samir apenas o olhava fundo.
— Sim, eles vão resolver, e a perícia já provou que o meu chefe tinha um ferimento semelhante a uma facada perto do estômago. E também encontraram o anel de casamento da Sâmia embaixo do corpo dele. — afirmou, e Samir desviou os olhos por alguns segundos, parecendo pensar em algo — Está em posse da polícia, no momento. Não faz ideia de como ela perdeu, seu estrangeiro?
— Por favor, pare de me acusar! Não fiz nada! Só a tirei daquele quarto antes que o seu querido chefe a matasse de vez, graças aos acessos de loucura! E se ele foi esfaqueado, onde está a faca?
— Não importa, só sei que vou fazer de tudo para que você apodreça na cadeia! O meu chefe estava apaixonado pela esposa e nunca a machucaria! Com certeza, tentou atirar em você, e não nela! Você vai pagar por tudo, Samir! Se acha que vai casar com a viúva dele e usufruir da herança, está enganado!
— Não ligo para o dinheiro dele! Só fiz o meu trabalho! Porque não me deixa em paz? Isso tudo é porque tenho descendência estrangeira e, automaticamente, não sou confiável? Nem o delegado quis me escutar, já que supôs o mesmo que o senhor!
— Samir, vamos embora. — Abelardo surgiu, ao nos ver discutindo e o puxou pelo braço — Não fale mais com o meu cliente sem a minha presença, Otávio.

  Mais tarde, em casa, no silêncio do meu escritório, refleti no fato de não terem achado a tal faca. Com certeza, não encontrariam, até porque mandei um vigia de confiança entrar na mansão, antes do amanhecer, após o fogo ter sido apagado, e vasculhar o quarto em busca dela.
  Por sorte, a encontrou e me entregou. Sei que Samir só fez aquilo para salvar minha filha, e aquela faca só faria todo mundo pensar o contrário. Ajudá-lo era o mínimo, depois de tudo.
  Peguei-a dentro do cofre, enrolada num lenço, e observei-a por alguns segundos. Ainda havia cheiro de queimado nela e sangue manchando a lâmina. O odor embrulhou o meu estômago e guardei rapidamente, ainda sem entender porque Samir e minha filha sorriram. Não, eles não seriam capazes de uma atrocidade dessas, repeti, e esperava de coração que fosse verdade.
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Hasan    Where stories live. Discover now