𝟐. "𝑨𝒉, 𝒏𝒂̃𝒐, 𝒂 𝒇𝒊𝒍𝒉𝒂 𝒏𝒂̃𝒐!".

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                                    Samir

 

   Puxei o ar devagar, ainda deitado sobre o sofá da sala da diretora daquela escola estúpida, sentindo a ferida na minha testa queimar, graças ao remédio usado pela enfermeira. Bando de imbecis, ele mereceu, pensei, e olhei na direção da minha tia, insuportável como sempre, chorando desesperada, sentada numa cadeira ao meu lado.

— Vai ficar tudo bem, te juro! — ela disse, segurando a minha mão direita, tremendo bastante.
— Acharam o Marcos na segunda torre do sino. Foi acidental, sem dúvidas. — um professor falou, nervoso — Coitado dele!
— Não foi sua culpa, sobrinho. — ela me garantiu, acariciando o meu cabelo negro.
— Foi culpa minha sim, tia. — falei, deixando o meu olhar se perder nos afrescos do teto.
— Está atordoado, não sabe o que diz. É impossível, impossível! — a diretora falou, também agitada.

  Levantei-me, farto daquilo, e todos ao redor continuavam especulando o que houve, sem prestarem atenção em mim. Os chamei, mas não responderam, ainda falando entre si, ignorando-me. Já disse que fui eu, bradei, nervoso, porém não adiantou. Saí dali, chorando, até finalmente chegar nas portas da segunda torre do sino, que atravessei, dando de cara com o Marcos, caído no chão, com a cabeça sobre uma poça de sangue.
   Imediatamente, encarei as minhas mãos, vendo aquele mesmo sangue sujar as minhas palmas. Quando retornei o foco para o morto, ele estava de pé, à minha frente, encarando-me fixo, pálido, com um dos braços retorcido. Está feliz agora?, perguntou, enquanto mais sangue escorria da sua boca, com cheiro podre, manchando toda a sua roupa, escorrendo pelo piso, até finalmente tocar os meus pés. Afastei dois passos, sentindo o ar faltando e o nariz ardendo com o odor, até que um som irritante chegou aos meus ouvidos, e despertei desse sonho com o coração disparado.
   A luz que entrou pela janela fez os meus olhos doerem mais do que o normal. Me levantei, sentindo o corpo estranho e a cabeça latejando. Gripe, hoje não!, resmunguei comigo. Consegui uma entrevista para uma vaga de guarda-costas para um homem rico, e isso é o que eu sabia fazer de melhor: proteger o que era importante para outros, independente do que fosse. É sempre dos outros, reclamei, cansado.
  É uma pena que eu não poderia colocar no meu currículo certas habilidades que possuo, fora o mês que passei buscando uma pessoa, no exterior, a pedido do irmão de um chefe que tive. Vou só buscar uma encomenda, falei para a minha família, ao fazer as malas. Acho que meu futuro patrão se assustaria com isso.
   Quase ri disso ao entrar na banheira com água fria, torcendo para melhorar as coisas. Depois de pronto, escrevi no caderno que vivia muito bem escondido sobre o sonho repetitivo e me arrastei escada abaixo até a mesa da cozinha aonde minha família tomava o café.

— Eu só quero saber quando vou ganhar netos, Samir. — minha mãe, Soraya, me perguntou, pela milésima vez — Na sua idade, eu já era casada e tinha você e sua irmã.
Uai, mãe, por favor, esse assunto agora não. — pedi, tentando engolir o suco, sentindo a garganta arranhando — É bom ter uma esposa, antes de ter filhos.
— É um absurdo você e a Érica terem terminado! Ela é linda, um amorzinho e cozinha muito bem! Não sei o que mais você procura numa esposa! Eu tinha várias sugestões para o bolo da festa! — reclamou, e meu pai, Omar, só balançou a cabeça, concordando, ao colocar um pedaço de torrada na boca — Ela passou dias te ligando, pobrezinha! Por acaso, estava traindo-a, filho?
— Mãe, eu só estava namorando há 6 meses, e não, não estava traindo ninguém. Não gosto disso. Pelo amor de Deus, mal comecei o namoro e a senhora comprou um smoking para mim dizendo que era para a cerimônia!
— A senhora tem que parar de se precipitar, mamãe! — Zaina, minha irmã gêmea, se manifestou — Samir, quando comecei a namorar com o Amin, ela saiu e comprou um monte de roupas de cama novas para a minha casa, sendo que nem tinha uma e estávamos juntos fazia uma semana!
— Não me culpe por incentivá-los! Estou me certificando de que nada falte para os meus filhos! — se justificou, e eu ri baixo, apesar da dor de cabeça; minha mãe era louca, mas ainda sim a amava.
— Só não exagere, mãe.
— Se não começarem bem, não vão chegar aos 35 anos de casados, assim como eu e seu pai. Quero os dois fazendo bodas de ouro! — exigiu, apontando para nós — E trate de arranjar uma esposa, Samir! Você já está passando da idade! Posso mandar uma carta para minha irmã, em Belo Horizonte, para ver se ela conhece alguma moça interessante.
— Pelo amor de Deus, não faça isso, de novo! Já basta aquela outra que vocês tentaram me empurrar.
— Você vivia falando, desde os seus 15 anos, que queria ter a sua família, e quando apareceu a chance, simplesmente fugiu!
— Também acho que não deve trazer ninguém, Soraya. — meu pai me apoiou, o que achei esquisito, naquele assunto — Corre o risco do Samir fazer o mesmo que fez, da última vez, quando a sua irmã veio nos visitar, trazendo um casal junto com a filha.
— Ah, pai, nem foi tão ruim assim! — relembrei, e notei que Zaina segurou uma risada.
— Você aterrorizou a moça, dizendo que era um matador profissional. A coitada  nem quis pisar aqui em casa, depois disso, achando que iria matá-la! Sorte que se ficaram numa casa alugada, porque com certeza não aceitariam dormir aqui. Não ria disso, Zaina, não apoie o seu irmão! — meu pai a repreendeu.
— Perdão, papai. — ela se desculpou — Mas você foi muito mau com ela, maninho.
Uai, acha que se eu fosse um matador profissional, iria sair dizendo?
— Isso não é engraçado, Samir. — minha mãe alertou, comigo rindo, ao lembrar da tal chorando com a minha tia, depois do que eu disse — Só está se prejudicando.
— Mãe, aquilo foi coisa de jovem.
— Você tinha 23 anos, era adulto o suficiente! Disse que esquartejou um homem num abatedouro! Que coisa horrível! Você precisa achar alguém! Não pode passar os anos que te restam sozinho. — afirmou, e eu apenas apertei o canto dos olhos.
— Não querendo me intrometer, mas eu preciso concordar com a mamãe. É fácil de lidar com você, maninho. É bonitinho dimais da conta, então não sei qual a sua dificuldade em manter um relacionamento. Mas vai achar a mulher na hora certa, fique tranquilo. Será aquela que te fará querer incendiar o bairro todo. — afirmou, e eu franzi a testa, com o exagero — Não se apresse, fragou? — aconselhou, com uma piscadinha e um carinho no meu rosto.
— Deveria trabalhar comigo, no escritório, num emprego normal, Samir. — meu pai afirmou, ajeitando os óculos no rosto, sempre reclamando da mesma coisa, o que me incomodou — Talvez já estivesse casado, desse jeito. Provavelmente, esse trabalho de guarda-costas assusta as moças. Estamos prestando assessoria para a empresa de um homem chamado Daniel Magalhães, e ele é muito importante!
— Eu sei, o conheço de vista. — respondi, com um fio de indiferença, evitando afrontar o meu pai, o que era totalmente desnecessário naquele momento.
— Pois, então! Nenhuma mulher quer se casar com um homem sem um emprego estável. — minha mãe concluiu.
— Então, vou lá. — falei, com um suspiro entediado, me levantando.
— Lá aonde, jacu? Arranjar uma esposa? — Zaina perguntou, rindo.
— Para uma entrevista, ali pertinho. Benção mãe, benção pai. — pedi, vestindo o paletó e pegando a pasta.
Deus te abençoe, filho. — responderam em uníssono, no nosso idioma natal, o árabe.

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