𝟖𝟎. 𝑭𝒆𝒍𝒊𝒛 𝒂𝒏𝒊𝒗𝒆𝒓𝒔𝒂́𝒓𝒊𝒐, 𝒑𝒂𝒓𝒕𝒆 𝟒.

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                                   Samir

 
  Olhei o pingente do colar da minha amada, pequeno na palma da minha mão, e delicado como ela. Tirei do seu pescoço ainda no carro, temendo que roubassem no hospital, e jurei devolver-lhe quando ganhasse alta.
  Ela vai ganhar, ela vai sobreviver, repeti mentalmente, no banheiro do Hospital Antônio Pedro, aguardando notícias dela, depois que fizeram curativos nos meus braços.
  Ela não vai morrer, ela não vai morrer, murmurei, apertando os olhos, sentindo o choro incessante. Encarei as minhas mãos sujas com o sangue dela, e aquela foi a primeira vez que senti nojo daquilo. Abri a torneira e esfreguei as palmas na água até me cansar, pensando no que poderia ter feito diferente.
  Agarrei as laterais da pia, soluçando, sem conseguir tirar da cabeça a imagem dela ferida. Me perdoa, meu amor, me perdoa, implorei, para o teto. Eu tinha fracassado em mantê-la segura e não sabia o que fazer se ela morresse.
  Ela não vai, ela não vai, sussurrei, repetidas vezes, tentando secar o rosto com as mangas da minha camisa, também manchadas com o nosso sangue e saí, indo até a sala de espera, aonde sentei e enterrei o rosto entre as mãos. Ela vai sobreviver, ela vai sobreviver.

— Samir, Samir, por favor, o que aconteceu? — Leonora surpreendeu-me, surgindo e ajoelhando à minha frente, segurando nas minhas mãos, com o rosto marcado pelo choro — Pelo amor de Deus, fale! Ah não, você está todo machucado! O que houve?

  Em seguida, doutor Alfredo veio, também exausto pelo choro e à espera de notícias sobre os filhos, auxiliando a esposa a sentar numa cadeira, sob efeito de calmantes. Matilde os acompanhava, e parou para ouvir o que eu tinha a dizer.

 
— Eu saí para procurá-la e subi as escadas. Senti um cheiro de fumaça, mas não sabia de onde vinha. Quando me aproximei do quarto, ouvi-a falando alto, nervosa, para abaixar a arma. Só que entrei e o vi atirando nela. — comecei, sentindo a voz embargar e as lágrimas voltarem, com a memória do que houve — Ele só sabia repetir “agora nunca mais vai ver o seu irmão”, e partiu para cima de mim com uma faca, falando que eu ia morrer junto com ela e o Miguel!
— Que faca é essa?
— EU NÃO TENHO IDEIA, LEONORA, NÃO TENHO! — menti, exaltado — Só lembro que brigamos e quando me dei conta... ele estava caído sangrando, então... Eu juro que não queria mas... A faca foi muito fundo e... Por favor, me perdoa, eu não queria... A Sâmia se queixou que o Daniel sempre reclamava da proximidade dela com o irmão e...
— Isso é um absurdo! Eles sempre foram unidos! — Matilde se manifestou indignada.
— Ele bateu nela, dias antes, logo assim que voltaram da lua de mel. — prossegui, vendo o ódio deles aumentarem — Ela jurou que não, mas percebi o corte no lábio dela. Eu ia contar para o senhor, doutor Alfredo, só que ela implorou para não fazer e que aquilo não era nada.
— AQUELE MONSTRO PERVERSO! Como teve coragem de fazer isso com a minha filha? — indagou, gesticulando, bravo.
— Isso é culpa sua, Alfredo! — a esposa acusou, correndo até o marido, dando-lhe vários tapas, fazendo-o se encolher — Foi o seu maldito vício que a colocou nessa situação horrível! É SUA CULPA! A Theodora está morta! A nossa filhinha está morta! É SUA CULPA, SUA CULPA! — berrou, com a governanta afastando-a.
— Senhor, o vi circulando pela propriedade quase o dia todo, enquanto eu fazia a ronda. Ele parecia nervoso e falava sozinho, mas tenho certeza que ouvi mencionar o Miguel. Eu juro que não quis machucá-lo, mas precisava tirá-la de lá antes que... — menti, aproximando-me dele.
— Fique tranquilo, Samir, não foi sua culpa.
— E se foi ele que começou o incêndio? Pode ter sido, não pode? — questionei, e o seu olhar assumiu um fio de confusão — O Daniel estava tão bêbado que...
— Imagino que possa ter feito, mas não pense nisso agora. Obrigada por tirar a Sâmia daquele quarto. Não sei como te agradecer. — confessou, constrangido, com os olhos cheios, envolvendo-me num abraço apertado, o que me surpreendeu, e pude sentir a tensão no seu corpo.
— Fiz o que devia, senhor. — afirmei, retribuindo o gesto, satisfeito por vê-lo cheio de culpa — Por favor, se eles souberem que o feri, nunca mais vão me deixar sair! O que eu faço, doutor Alfredo? O que faço? — perguntei, ao afastar e olhá-lo fundo, suplicante.
— Eu não sei, é que... Só não diga que o feriu, é melhor. Fale que o empurrou e saiu com a Sâmia, apenas isso.
 

  Concordei e o médico apareceu, depois de nos fazer esperar muito tempo, para informar que a minha amada teve uma sucesso na cirurgia e estava na enfermaria, ao contrário do irmão, que não resistiu ao ferimento.
Madi desmaiou com a notícia, e senti um pesar muito grande com aquilo tudo. Miguel era bacana, e sabia o quanto Sâmia o amava. Infelizmente, a esposa conseguiu ser reanimada a tempo de ver os policiais entrarem à minha procura.

— Samir Aboud Hasan? — o primeiro perguntou, mostrando o distintivo — Por favor, nos acompanhe. Está preso por suspeita de envolvimento no homicídio de Daniel de Moraes Magalhães.— disse, ao me virar de costas e prender as algemas nos meus pulsos.
— MAS QUE ULTRAJE! Esse jovem salvou a minha filha de um maníaco que provavelmente incendiou a nossa casa! Como se atreve a prendê-lo?
— Eu não fiz nada, nada! Não podem me levar!
— Uma testemunha o viu conversando com a vítima, pouco antes do ocorrido. Precisa responder algumas perguntas.
— Vocês vão pagar caro por esse circo! Samir, eu vou cuidar de tudo, não se preocupe. Ligarei para o meu advogado agora mesmo! — garantiu, antes que eu protestasse mais — Não vou te deixar preso, ouviu? Eu sei da sua inocência, só não resista, vá com eles.

  Concordei e saí com os homens, enquanto todos os enfermeiros e médicos de plantão observavam, curiosos e assustados. Colocaram-me no banco de trás e chegamos no Palácio da Polícia, minutos depois, e não teve um que não me olhasse com desprezo, graças à maquiagem borrada e a camisa suja de sangue.
   Ao colherem as minhas digitais, pegarem a minha arma e tirarem uma fotografia comigo segurando uma placa com o meu nome e os dados do local, continuaram cochichando, chamando-me de vagabundo estrangeiro e coisas piores. Só conseguia pensar na Sâmia enquanto apertava o meus olhos ardidos pela luz do flash da lâmpada na câmera que usaram.
 O delegado de plantão conversou comigo e pareceu não ligar para a minha possível inocência, só atentando ao fato de que um homem importante morreu e que gente como eu receberia um castigo merecido.
Depois, fui praticamente jogado dentro da cela fria sem saber quando sairia e deitei no banco de concreto, voltando ao choro pelo que aconteceu. Me perdoa, meu amor, me perdoa, implorei para o ar, esperando por uma resposta que nunca veio.

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Hasan    Where stories live. Discover now