𝟗𝟎. "𝑵𝒆𝒎 𝒂 𝒎𝒐𝒓𝒕𝒆 𝒏𝒐𝒔 𝒔𝒆𝒑𝒂𝒓𝒂."

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Sexta-feira, 03 de janeiro de 1958.

                               Sâmia

  Os últimos meses passaram voando, e o dia que eu mais aguardava finalmente tinha chegado. A cabeleireira encaixou a discreta grinalda na minha cabeça, enquanto eu me arrumava na casa da Beatriz, devido a proximidade do haras, aonde sempre sonhei fazer a recepção do meu casamento.
   Consegui me reconciliar com Leonora, que estava animada, assim como a Madi. Beatriz estava pensativa, ao ninar o pequeno João, que tinha o mesmo sorriso do meu irmão, Miguel. Focar no filho era a única coisa que impedia o luto de derrubá-la.
  Lembrei de quando Samir contou sobre o jantar terrível aonde revelou o segredinho da tia, e obviamente todos ficaram do lado dele. Dona Soraya pediu que não falassem sobre o que houve ali para nenhum parente, pois temia uma represália coletiva.
Achei bom, porque manteria a Jamile longe. Ela deixou o Rio de Janeiro dias depois, afirmando que eu e o Samir pagaríamos caro por tudo.
  O que realmente me preocupou foi o almoço com os nossos familiares, logo depois, na minha casa. Seu Omar foi gentil, assim como Zaina e o marido, com exceção da dona Soraya, que não parecia contente pelo filho estar com uma brasileira, e que segundo ela, “talvez eu não conseguisse aprender tudo sobre a cultura tão rápido”. Claro que aquela conversa estava me enchendo, porém aguentei; minha simpatia, naquele momento, era necessária.
   Meu pai também expressou sua preocupação por estarmos nos precipitando, dizendo que não nos conhecíamos direito, o que foi apoiado pela minha sogra. Num certo momento em que fui ao banheiro, Madi me seguiu e tentou me convencer a desistir dele.

— Você só está se casando por gratidão, Sâmia. — sussurrou, conosco dentro do cômodo.
— Eu o amo, Madi, desde o primeiro dia. Meu coração sempre foi dele. — respondi, deixando-a surpresa — Ele também me ama há muito tempo, mas o maldito do Daniel entrou no caminho.
— Vocês tinham um caso?
— Não, ele nunca me tocou. — menti, em tom indignado — Já estou cansada de tentarem escolher com quem devo ficar! É a minha vez de decidir!

  Saí logo, irritada, e voltei para a mesa como se nada houvesse. Foi quando Samir puxou uma caixinha do bolso e me pediu em casamento na frente de todos, o que causou um espanto coletivo. Quem puxou as palmas foi a Zaina, e os outros a imitaram, não tão contentes. Que se danem eles, Samir sussurrou para mim, em árabe, e segurei o riso.
  Colocamos as alianças nas mãos direitas um de outro, terminando aquele almoço com todos um pouco tensos. Avisamos que daríamos uma volta, e a sua mãe falou que não era apropriado ficarmos sozinhos, pois não era correto.
  Fugimos para o seu apartamento, onde passamos o restante do dia rindo da reação deles, enrolados nos lençóis, comendo torradas e geleia de amora.
   Saí dessas memórias quando me trouxeram um pão com ovo, e a minha madrasta não pareceu aprovar aquela opção de café da manhã, dizendo que era comida da classe média.
  Apenas ri, pensando no tempo em que já saboreava as coisas da classe média. Então duas batidas soaram na porta do quarto; era o Samir, que veio na casa trazer a joia que me prometeu.
   Eu fechei bem o meu roupão e as mulheres esconderam o meu vestido de noiva, então ele entrou, segurando uma caixa relativamente grande de madeira escura.
  O seu terno escuro era maravilhoso, e na lapela tinha um broche belíssimo de diamantes, que lembrava um tipo de flor. Feche os olhos, pediu, e ouvi os suspiros espantados delas, assim que senti o metal frio e pesado do colar no meu pescoço, sobre a joia que eu nunca tirava.
  Quando abri, de frente para o espelho, aonde estava sentada, vi centenas de diamantes que lembravam estrelas perfeitamente alinhadas, parecendo um colar egípcio que vi num museu, anos atrás. Era magnífico! Brilhava tanto que precisei tocar para ver se era real.

— É um colar à sua altura, com 163 diamantes.
— Como assim, meu bem?
— Você não tem 1,63 de altura? — perguntou, e eu comecei a rir com o detalhe, assim como as outras.
— É um presente, do Benedito Gonçalves, para o nosso casamento. — respondeu, olhando pelo reflexo, de forma irônica.
 
  Lembrei que esse homem ainda devia dinheiro para ele, então provavelmente aquele colar era a dívida final. Li na tampa da caixa a inscrição em árabe feito das estrelas que caíram e sorri, emocionada, porque aqueles minutos  que passamos vendo a chuva na piscina, semanas antes, foi aonde decidi que o amava, acima de qualquer coisa. Na parte interna da tampa a frase Meu amor por você é infinito, até o último suspiro só marcou mais ainda o que eu sentia. Depois de um beijo rápido, ele se foi.
  Coloquei empolgada o meu vestido tomara que caia, com a saia evasê e a calda em camadas, nas costas. Brinquei que aquele não rasgaria, o que arrancou risadas delas. Ao me ver no espelho, com somente a parte de baixo do cabelo solto, perfeitamente ondulado, realçando o meu rosto, o colar incrível e o vestido moderno só aumentou a minha felicidade. Aquela roupa fez-me sentir completamente livre e respirei fundo, aliviada por conseguir tudo o que eu queria.
  Saímos rápido da casa e fomos para o haras, aonde os convidados e o padre nos aguardavam. Foi difícil convencê-lo a nos casar ali, até porque ele também fez o meu casamento com o Daniel.
  Mas depois de contar uma história triste sobre como eu sonhava com o amor verdadeiro, igual o do meu falecido irmão, Miguel, ele concordou.
  Montaram uma tenda enorme numa parte do terreno, aonde corríamos com os cavalos nos jogos de Pólo. Tudo estava bonito, rico e discreto: do jeitinho que eu e Samir queríamos.
  Ao entrar de braços dados com o meu pai, notei algumas expressões estranhas de ambos os lados. Dizer os votos foi engraçado, até porque o padre perguntou se eu estava bem para falar. Afirmei que sim e repeti tudo o que disse tranquilamente, sentindo-me leve, olhando fundo nos olhos emocionados do meu querido.
  Até que a morte nos separe, ele prosseguiu, e eu apenas ri junto com o Samir, assustando a todos. Nem a morte nos separa, porque o nosso amor é alicerçado no sangue, falei, bem calma, colocando a aliança na mão esquerda do Samir, com o idoso confuso.
  Na sua vez, disse o mesmo que eu, colocando a aliança seguida do anel com um grande diamante, e viramos para o ancião que segurava a Bíblia sem entender nada. Se tem alguém que possa impedir esse casamento, que fale agora ou cale-se para sempre, proferiu, em voz alta, arrepiando-me, e o meu amado olhou-me tenso. Afinal, tinha sobrado alguém para nos impedir?
  Dona Jamile recusou viajar até aqui, a Layla, Érica, tia Esmeralda, Felipe e  Daniel estavam enterrados, e o Eduardo, que fizemos questão de chamar só para vê-lo andar de muletas, não fazia ideia de absolutamente nada.
  Não tinha mais ninguém no nosso caminho, ninguém. Por fim, prosseguiu, nos declarando casados. Meu marido me beijou com carinho, sussurrando no meu ouvido meu amor por você é infinito, até o último suspiro.
  Todos nos aplaudiram, e chamamos os poucos convidados para acomodarem-se nas mesas, posicionadas no restante da tenda. Benedito veio nos cumprimentar, aparentando tensão, e prendeu o foco no meu colar, depois em Samir.

— Foi uma cerimônia muito bonita, meus parabéns. Fico feliz que gostou do colar, senhora Hasan.
— Gostei muito, doutor Benedito. Nunca vi nada tão belo.
— Eu te agradeço por entregar a tempo do nosso casamento.
— Não tinha muita escolha, não é, Samir? Não tenho mais nenhuma dívida com você. Meu débito está pago.
— Realmente. Foi um prazer negociar com o senhor.  — disse, estendendo a mão, que o homem hesitou em apertar, por alguns segundos — Sabe que pode sempre contar comigo. Talvez possamos trabalhar juntos, no futuro.
— Acho melhor não. Adeus, Samir.

    Nos sentamos com os familiares numa mesa grande, tomando champanhe e algumas delícias do Egito. Notei o olhar estranho do meu pai em mim e acariciei o seu braço, para ajudar no seu humor.

— Vocês pretendem fazer o que, depois da lua de mel na Itália?
— Vamos para a faculdade, talvez a UFRJ. Não queremos estudar tão longe, e logo terei de tomar posse na empresa do Daniel. Também precisamos conversar sobre a minha participação na nossa empresa, pai.
— Não precisa se preocupar com a Bastos, filha.
— Pai, o senhor não pode administrar tudo sozinho. Não tem mais o Miguel, então me deixa cuidar da parte dele. É a herança da Beatriz e do filho!
— Não acha que é muita coisa para você cuidar?
— O Samir vai me ajudar. — finalizei, e ele desistiu de argumentar — Gostaríamos de cuidar da reforma da mansão, se não for um problema.
— Ainda não me sinto bem para mexer nela. Te dou uma resposta, futuramente. — encerrou, segurando a minha mão e eu sorri, com a raiva me corroendo por dentro.

  Tratei de me concentrar na festa e fui dançar My funny valentine com o meu amado, até aquele momento nunca mais se repetiria. Ele olhou-me fundo, e por um instante esqueci de todos ao nosso redor, e foi como na biblioteca, aonde demos o nosso primeiro beijo e me senti segura no seus braços. Demos início ao nosso futuro ao passar a noite na nossa casa nova, onde terminei usando apenas o colar.
   Samir falou que o broche da sua roupa era uma flor de Cicuta, arrancando risadas minhas. Aninhei-me no seu abraço, cansada, mas infinitamente feliz. Tínhamos toda a riqueza que poderíamos sonhar e construiríamos o nosso mundo do jeito que bem entendêssemos, contando a nossa história da forma mais convincente e bonita possível.
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Hasan    Onde as histórias ganham vida. Descobre agora