𝟔𝟎. 𝑺𝒂𝒄𝒓𝒊𝒇𝒊́𝒄𝒊𝒐, 𝒑𝒂𝒓𝒕𝒆 𝟏.

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                                 Sâmia

Sábado, de junho de 1957

  Respirei fundo, segurando o tecido fino do meu roupão preto, fechando os olhos para segurar o choro, enquanto a cabeleireira finalizava o meu coque com alguns cachos soltos e encaixava a coroa na minha cabeça, comigo sentada em frente ao espelho da penteadeira, por volta das 07h10min.
  Beatriz, minha madrinha, esticou o vestido de noiva sobre a cama, enquanto Leonora, minha outra madrinha, tomava uma xícara de café com bolo de cenoura, com cautela, para não sujar o vestido verde escuro.
  Elas estavam rindo mas, segundos depois, Madi entrou com a Matilde, e ambas se emocionaram com toda a arrumação. Eu só queria chorar, até porque Samir preferiu ir para casa bem cedo, e eu só o veria na cerimônia, que aconteceria na mesma igreja que Miguel casou. Foi melhor ele ir, pensei. Não queria expô-lo aquela animação toda e ver me aprontando para casar com outro.
  Lembrei de ontem à noite, deitada, agarrada à ele, sentindo o coração pesado. Isso vai acabar logo, sussurrou, acariciando a minha cabeça, e eu respirei fundo, sentindo o seu cheiro tão aconchegante. Eu te amo, falei, e ele respondeu que sentia o mesmo.
  Abri os olhos, com a Madi pedindo para todas nos darem licença. Levantei e sentei ao seu lado à mesa que tinha ali no cômodo, para tentar comer alguma coisa. Imaginei que ela queria ter a conversa que me orientaria sobre o que fazer na noite de núpcias.
   Minha avó, anos antes, contou que minha falecida mãe fez o mesmo com a dela, pouco antes de se casar. Fiz a mesma expressão inocente de sempre, e a minha maquiagem leve e impecável ajudou nisso, deixando-a falar calmamente.
   Disse para relaxar e não me preocupar, e que a primeira vez poderia ser estranha, porém depois melhoraria. Disso, com certeza, eu sabia, então apenas sorri.
   A minha foi estranha, no lugar que eu menos esperava, porém não deixou de ser incrível. Pensei no olhar dele, naquele instante, tão fixo no meu. Logo, minha madrasta terminou a explicação, e apenas disse que entendi, abraçando-a carinhosamente, agradecendo por tudo o que fez por mim, durante esses anos todos.
   A mulher secou uma lágrima e chamou as outras de volta, para me ajudar a colocar o vestido e fechar os vários botões nas costas. A gola alta de renda escondeu a joia que Samir me deu, e Matilde estranhou que eu não tinha comido nada. Usei o nervosismo como desculpa, mas era impossível comer com aquela situação.
  Sorria, sobrinha, minha tia enxerida falou, e eu simplesmente a ignorei, calçando os sapatos, enquanto Beatriz conferia o meu outro vestido, um mais leve, nos joelhos, marfim, liso, para usar na festa. Desci, com elas me segurando pela mão, e meu pai me olhou emocionado.
   Apenas o abracei e deixei que me ajudasse a entrar no carro. Fiquei tão distraída no percurso, lembrando do quão o meu amado estava triste que nem me dei conta de quando chegamos na igreja.
   Me posicionei, na entrada, de braço dado com o meu pai, que segurou a minha mão, delicadamente, ao som da marcha nupcial. As portas de madeira se abriram, com as minhas madrinhas e os meus irmãos pequenos andando à frente, carregando as alianças e um pequeno buquê de flores vermelhas, conosco seguindo atrás.
   Meu estômago embrulhou quando bati os olhos no Samir, e notei que os dele estavam avermelhados. Isso me fez apertar com força o meu buquê de rosas vermelhas com sempre-vivas brancas. Logo, Layla segurou no seu braço e sorriu para mim.
   O véu sobre o meu rosto disfarçava a minha dor, e respirava devagar, tentando manter o foco no altar, onde Daniel me aguardava, com um sorriso no rosto e o terno impecável. Em instantes, parei ao seu lado e forcei um sorriso tímido, assim que levantou o fino tecido e me encarou, maravilhado, com um sorriso de orelha a orelha, dando um beijo no meu rosto. Puxei o ar, com força; estávamos no meio do plano e não adiantaria recuar agora.
  Estamos aqui reunidos, para celebrar a união e o amor de Sâmia e Daniel, o padre começou a falar. A igreja estava perfeitamente arrumada, tudo estava perfeito para fazer aquele dia bonito e enganar todos os convidados.
  Convenci facilmente o Daniel a desistir de fazer o noivado, reduzindo tudo a um almoço em família, na nossa casa. Vamos direcionar os recursos para o casamento, falei, e ele gostou. Nesse dia, tive a certeza de que o meu noivo não tinha nenhum herdeiro.  Só terá a mim, pensei, assim que o padre chegou na parte que eu mais temia.
  Nos viramos um para o outro, de mãos dadas, e o homem começou a repetir os votos. Eu, Daniel de Moraes Magalhães, aceito você, Sâmia Vasconcelos Bastos, como minha esposa, para amar e respeitar, ser fiel, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, até que a morte nos separe, falou, calmamente, com olhar brilhante e alegre, colocando a aliança dourada no meu dedo anelar esquerdo, onde também colocou o anel com a esmeralda, depois de pegar da outra mão. Queria arrancá-las e tacar aquilo na cara dele, porém me controlei.
  Agora sua vez, o idoso disse e o meu coração disparou. Eu, Sâmia Vasconcelos Bastos, aceito você, Daniel de Moraes Magalhães, como meu legítimo marido, repeti, mas o nó na minha garganta apertou e acabei travando. O ancião repetiu o restante, mais de uma vez, pensando que eu tinha me esquecido, mas as palavras não saíam. Não podia jurar tudo aquilo para ele, nunca! Fora que teria que cumprir. O meu coração era do Samir, assim como todo o meu ser.
   Ninguém mais me entendia como ele, nem mesmo chegou perto de tudo o que fez para mostrar o quanto me queria. Lembrei da sua voz grave, dizendo que me amava, e do seu toque que tanto me reconfortava. Fechei os olhos devagar, com as lágrimas descendo e o Daniel me chamando. Ela está passando mal, a voz da Beatriz ecoou, e o meu noivo segurou firme nas minhas mãos.
  Não posso jurar, não posso, não posso, repeti mentalmente, e fingi um desmaio, caindo de joelhos, sentindo que alguém me segurou, ao som do suspiro coletivo. Ela estava nervosa, nem conseguiu tomar café, a Madi falou e abri os olhos, vendo Daniel segurando o meu rosto, preocupado, e os meus pais ao redor. Aceito, sussurrei, com ele me levantando, confuso. A Sâmia precisa comer logo alguma coisa, Leonora alertou, e eu repeti que aceitava.
  Podemos ir para o final?, ele pediu, nervoso, e o padre obedeceu, encerrando a cerimônia com um eu os declaro marido e mulher. Fingi melhorar um pouco e me sentei no banco, tomando a água que me trouxeram. Estava aliviada; aquele tormento estava acabando.
  Me levaram para uma sala reservada, e pedi uns segundos sozinha. Sentei numa cadeira, contente por escapar dos malditos votos. Minutos depois, alguém bateu na porta e me surpreendi com Zaina entrando, me envolvendo num abraço.

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