𝟔𝟔. 𝑪𝒉𝒂𝒏𝒕𝒂𝒈𝒆𝒎.

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                                Samir

Segunda, 3 de junho de 1957

  Coloquei as malas no quarto da minha tia, grato por finalmente sair da casa dos meus pais. A Layla foi ao médico e viria para cá só mais tarde. Acordou com dores de cabeça e indisposta, suspeitando de um resfriado.
  Eu já estava arrumado, doido para ir trabalhar e ver a minha amada, porém resolvi ajudar e ter uma conversinha com a minha querida tia, longe da minha namorada. Antes de chegar na sua nova casa, peguei no meu quarto a chave que restou do incidente em Minas, guardada numa caixa trancada e muito bem escondida, e fui cumprir a minha parte do plano.

— Acho que foi tudo, tia. — falei, contente pela casa só ter um andar.
— Ah, muito obrigado, Samir! Pena que o seu chefe pediu que voltasse antes.
— Pois é, uai, ele cancelou a lua de mel para tratar de negócios em São Paulo. Deixou a esposa sozinha e viajou. — menti, em tom indignado.
— Mas que absurdo! Logo agora, que acabaram de se casar! — soltou, ao sentar na beirada da cama.
— A Layla mencionou, ontem, antes de eu ir para o Demétrio, que viu a Sâmia na praça e ela estava bem chateada, e que o marido ainda ficou muito bravo por insistir em ficarem no hotel.
— Que esquisito, esse homem parecia tão atencioso!
— É, tia, eu também achei. As aparências enganam. Na verdade, eu queria as tais dica que a senhora tinha para me dar. — falei, sentando ao seu lado, e ela riu — Podemos começar pelo básico. Sempre fico sem jeito na hora de beijar a Layla.
— Bem, é simples. Digamos que vocês dois estão sozinhos, sentados tranquilos em algum lugar. Poderia começar segurando nas mãos dela, olhando fundo em seus olhos. — explicou, pegando nas minhas mãos.

  Encarei fixo os seus olhos castanhos, enquanto ela diminuía a distância entre nossos rostos. Por fim, senti o seu nariz roçar no meu e a sua respiração contra a minha. Encostei os lábios nos dela, com calma, me afastando, segundos depois.
  Porém me observou com um ar insatisfeito, puxando-me de volta para um beijo mais sedento. Só deixa o seu corpo agir, sussurrou, segurando firme na minha roupa, e acabamos deitando sobre o colchão.
  Sempre quis fazer isso?, murmurei no seu ouvido, e a mulher correu a mão pelo meu cabelo, me beijando outra vez, completamente em transe. Me perdoa, eu não consegui evitar, começou faz pouco tempo, respondeu, arfando, tirando o meu paletó. Ela realmente achava que eu era muito bobo a ponto de acreditar naquela besteira de me ajudar com a Layla.
   Não faz ideia do quanto me ajudou, tia, falei, afastando o rosto, correndo o polegar pelos seus lábios, vendo o quanto estava excitada. Tudo o que falou sobre mim, nesses anos todos, finalmente teria uma utilidade. Não podia acreditar no quanto a Sâmia estava certa sobre ela.
  Tinha que estar aqui para ver isso, pensei, com a minha tia me puxando para mais um beijo. Vai me ajudar no que eu precisar?, indaguei, subindo uma das mãos pela sua coxa e apertando levemente, fazendo-a concordar com um gemido. Tem que acalmar a Layla, porque vou terminar com ela, falei, o que a despertou do seu desejo.

— O que? Terminar? Como assim?
— Vou terminar com ela. — repeti, me levantando e colocando de volta o paletó.
— Espera, espera, terminar? — questionou, sentando-se, atordoada — Mas porque? Se é por causa do que está acontecendo entre nós, não precisa. Ela nunca vai saber.
— E o que está acontecendo entre nós, tia? — perguntei, tranquilo, sentando ao seu lado.
— Estamos nos envolvendo. — respondeu, convicta, e eu reprimi uma risada — Eu sei que pode estar confuso pelo fato de ser sua tia, mas se lembre de que não temos nenhum elo sanguíneo.
— Olha, eu vou terminar com a Layla porque simplesmente não sinto nada por ela.
— Impossível! Vocês dois se dão muito bem. E acabei de ver que você gosta de mulher, e muito! Eu tinha as minhas dúvidas, mas elas se foram.
— Tia, eu nunca tive dúvidas. Na verdade, não faço ideia de onde a senhora tirou isso. — prossegui, me pondo de pé, e indo até a porta do quarto, com ela me seguindo — Vou terminar e preciso que a convença a aceitar sem escândalo.
— Eu não vou fazer nada! Você não vai terminar! Ela é uma moça incrível e seria a esposa ideal. Pare de ser infantil e seja adulto, uma vez na sua vida! — ordenou, apontando-me o dedo — Assuma a responsabilidade!
Uai, a senhora migrou de amante para tia tão rápido! — soltei, irônico, com um estalar de dedos.
— É melhor você me respeitar, senão...
— Senão o que? — rebati, chegando bem perto, olhando-a fundo — Vai me ajudar, sim, até porque disse que faria.
— VOCÊ NÃO PODE SE SEPARAR DELA! — se exaltou.
— Porque? Os pais dela te prometeram algo, se nos casássemos?
— Eles jamais fariam isso!
— E a Layla? Vocês sempre estavam de segredinhos. Só o que ela poderia te dar seria dinheiro. Foi essa a promessa?
— Deixa de asneira! Só estou fazendo isso pelo bem de vocês dois! São perfeitos um para o outro.
— A Layla vai ser a esposa perfeita para quem quer perfeição. Eu quero alguém que me entenda.
— Não me venha com essa bobagem de ser entendido! Você fala disso há anos! A verdade é que não sabe o que quer, essa é a razão de sempre terminar sozinho! — constatou, gesticulando, nervosa — E eu sei que vocês ficaram naquele casamento e também passaram a noite juntos, então há uma grande chance da sua namorada estar grávida! — acrescentou, e eu suspirei, entediado — Ela amanheceu o dia passando mal, e logo saberemos se está esperando um filho seu ou não. Nem pense que vai fugir disso! Se terminar, conto para todos que dormiu com ela! — ameaçou, batendo o pé — Sabe como os pais dela são tradicionais, e vão ter que se casar, de um jeito ou de outro!
— A senhora não se atreva a falar qualquer coisa! Pensa que eu não sei sobre o tal Kaysar? — indaguei, e vi medo em seus olhos — Ele foi o primeiro da Layla, e não eu.
— De onde tirou isso? — perguntou, com tensão na voz.
— Tenho os meus métodos. Olha, vou deixar uma coisa bem clara: não vou ficar com ela, não importa o motivo. Se a senhora quiser falar para todos que é porque tenho medo de compromisso, que seja. Pode repetir isso quantas vezes forem necessárias, o que no seu caso, será muito fácil.
— Está me chamando de língua de trapo, seu abusado?
— Deve ser porque é isso, não é?
— Presta atenção, seu fedelho mimado: você vai casar com a Layla e nem pense que vou compactuar com essa tramóia que quer fazer!
— Ah, não vai? Eu só fico pensando na reação da nossa família ao saber que me assediou, justamente o próprio sobrinho! — falei, e ela se afastou dois passos, encostando na porta, chocada — E ainda por cima, me beijou e tudo.
— Como pode dizer uma coisa dessas?
— Imagino a expressão de nojo da minha mãe ao te olhar no rosto e saber que tentou se aproveitar de alguém que poderia ser seu filho, inclusive foi a primeira pessoa a me segurar, depois que nasci. — contei, me aproximando devagar, vendo as lágrimas brotarem nos olhos dela — Todos os parentes te escorraçariam ao perceberem que terminei com uma moça tão incrível por sua culpa.
— Ninguém vai acreditar em você, Samir. — afirmou, com a voz trêmula.
— Satisfazendo a sua luxúria com o filho da própria irmã!
— PARA!
— “O que há com você, sua imunda?”, vão te perguntar. Do que vão te chamar? Pervertida, suja, imoral, desnaturada...
— CALA A BOCA! NINGUÉM VAI ACREDITAR!
— Sei ser muito convincente, tia. Inclusive, já acreditaram em mim, uma vez.
— Como assim?
— Se lembra disso? — perguntei, ao tirar do bolso a chave antiga e ela franziu a testa, confusa — Esqueceu que a porta de uma das torres do sino tinha duas chaves?
— Que torre? — indagou, irritada.

  Seu foco se prendeu no objeto e finalmente o pegou, lendo o nome daquela escola idiota gravado no metal. Acho que várias lembranças correram pela sua mente, a julgar pela expressão de pânico e as lágrimas que começaram a cair, grossas, ao retornar o olhar para mim. Não pode ser, não pode ser, murmurou, segurando a chave escura, com as mãos trêmulas.

— Isso não é possível, não tem como ter sido você!
— E porque não, tia?
— Não, você estava desmaiado no banheiro e... O Marcos se trancou na torre e acabou... Não, isso não é verdade! Você só está tentando me enganar com uma coisa tão horrível!
— Esqueceu que eu sempre vencia as corridas nas aulas de Educação Física? Correr da torre até o banheiro foi muito fácil. A outra chave estava caída perto da mão dele, sobre o sangue, não estava? Aliás, tinha bastante sangue, não é? — perguntei, bem calmo — Os olhos estavam abertos, voltados para o nada, e um dos braços estava quebrado.
— Meu Deus... — sussurrou, quase sem voz.
— Ele caiu tão rápido! Mas fiquei feliz que o sino da torre ao lado tenha começado a soar na mesma hora. E ficou implorando pela minha ajuda, como se fosse merecedor dela!
— ISSO É MENTIRA, É MENTIRA! — esbravejou.
— Não, não é! Não teria como eu saber disso sem estar lá, não acha? — garanti, segurando nas suas mãos, fazendo a mulher se encolher no chão, contra a porta.
— NÃO, NÃO ME TOCA, NÃO ME MACHUCA!
— Porque está com medo? Eu não vou te fazer nada, tia. — continuei, agachando na sua altura, acariciando o seu cabelo, e ela revidou dando um tapa na minha mão — Preciso da senhora, ainda mais agora. E o Marcos morreu depressa, não se preocupe, não o deixei sofrer tanto. Ele perdeu o fôlego bem rápido. Na verdade, fiquei surpreso com o quanto o pescoço de alguém pode ser fácil de apertar. — confessei, tocando no dela, fazendo-a me empurrar e levantar apressada.
— NÃO, SAI, SAI, FICA LONGE DE MIM! — ordenou, apontando o dedo, chorando, e eu me levantei devagar, com a imagem do Marcos me encarando sem vida na cabeça — Você não presta, é um monstro! SAI DAQUI, AGORA! — berrou, se pondo de pé — O Marcos era um bom rapaz, tinha uma vida toda pela frente!
— Ele tinha, mas quem tem agora sou eu, uai! Sabe o que mais me enraiveceu? Foi ver todo mundo chorando pelo pulha preconceituoso e não fazerem nada a respeito do seu comportamento! É assim mesmo, só uma chacota de meninos, disseram, como se justificasse tudo, então, preferi eu mesmo resolver o problema! — contei, tomado pelo ódio — Até a Lídia, minha amiga, que pensei gostar de mim, na verdade me rejeitou só por causa da minha descendência. Disse que não era bom se misturar com alguém de fora. É como eu disse: as aparências enganam. Até que ela mereceu ver o namoradinho morto.
— Porque tão vingativo? Fazer isso tudo te fez sentir melhor?
— Não, não me senti, até porque não era essa a intenção. Mas consegui fazê-la se sentir tão mal quanto eu.
— Como conseguiu se olhar no espelho, depois dessa atrocidade? — questionou, arfando — Como pode encarar todo mundo depois de tudo? Quando te achamos ferido no banheiro, tememos que estivesse morto! Responde, Samir, como conseguiu?
— Foi difícil, nos primeiros dias. Eu sentia o cheiro do sangue dele pela casa toda. Fechava os olhos para dormir e via os olhos dele, me encarando tão fixo como se pudesse ver dentro de mim. Perdi as contas das horas chorando inconformado com o fato da Lídia preferir lamentar a morte daquele desgraçado, ao invés de me dar uma chance. Pensava que o meu sangue egípcio não me tornava merecedor do seu afeto. Me senti um idiota pra ter feito tanto por alguém que não merecia.
— Quem devia ter morrido era você!
— Já pensei nessa possibilidade, mas de que adiantaria? Preferi ficar vivo e seguir em frente.
— Por isso, ficou tão estranho, se isolando de todo mundo! Todos tentaram te consolar, sem saber que você era o assas... — perdeu as palavras, tentando segurar a dor — Faz ideia do sofrimento que causou à família dele? Arrancou um filho dos braços dos pais! Você sempre teve tudo, as melhores escolas, uma boa casa, boas roupas, bons amigos e uma família que te ama! Eu lembro da Soraya chorando desesperada por ter te colocado naquela escola, e principalmente depois, com medo de que você estivesse traumatizado e tentasse tirar a própria vida! Ela e o seu pai se culpam até hoje, mesmo já tendo se passado 15 anos! O QUE TE FEZ SER TÃO CRUEL, SAMIR? O que te faltou para ser uma pessoa boa?
— Talvez a vontade, sei lá. — respondi, dando de ombros — Acho que não sou mau de todo, mas que diferença faz agora? Afinal de contas, já se passaram 15 anos. Só preciso saber, nesse momento, se vai fazer o que pedi ou não.
— Você não presta, Samir!
— Isso é um sim?
— Eu vou, só por favor, vai embora! — implorou, com linhas negras marcando as suas bochechas por causa do choro interminável.
— Ótimo! E por favor, não tente nenhuma gracinha. Acho que a Layla chegou. — falei, ao ouvir alguém entrar na casa — Vou lá falar com ela. É melhor a senhora ficar aqui e se recompor. — sugeri, pegando a chave do chão e saindo, calmamente.
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Hasan    Where stories live. Discover now