𝟑𝟔. "𝑬𝒖 𝒕𝒆 𝒂𝒎𝒐".

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                                 Sâmia

  Dei uma última olhada no espelho do quarto, conferindo a minha frente única creme bordada com pérolas e a saia roxa pregueada. Peguei a pequena faca que meu guarda-costas me presenteou e prendi no elástico da meia bege, sobre a coxa direita. Ajustei o cinto e retoquei o batom lilás, saindo dali e encontrando os meus dois irmãos menores no corredor.
   A chuva já durava algumas horas, e prometi levá-los até a piscina, para cumprir um ritual de anos, que minha avó e meu pai faziam comigo e Miguel, quando crianças. Os segurei pela mão e descemos pela escadaria principal, cruzando com Samir, arrumado com um belo smoking.
  Respirei fundo ao olhá-lo nos olhos, e lembrar da sensação reconfortante que tive com o seu beijo, na praia, e no seu abraço, aonde o mundo se desligou e me senti segura, ouvindo o som do seu coração batendo.
  Prendi o sorriso, temendo que as crianças notassem e contassem para alguém. Ele se aproximou de nós, em passos rápidos, e quis correr e beijá-lo ali mesmo. Tentei evitar esse pensamento, e me concentrei na voz de Antônio, o caçula, que agarrou a mão direita dele.

— Samir, Samir, quer ver as estrelas caindo? Vem com a gente! — falou, puxando-o pela mão.
— Estrelas caindo? Como assim?
— Vem que eu te mostro. — falei, e ele não hesitou em me seguir.

  Seguimos até chegarmos na piscina. Ao entrarmos, apaguei a luz, sentando com eles no deque, na escuridão, olhando para o teto transparente. Os raios da tempestade iluminavam o ambiente, e também as gotas d'água que caíam, abrindo-se na forma de estrelas contra o vidro, acima de nós. Era algo mágico! Meus irmãos observavam admirados, e aquilo me lembrou da minha infância.
   Mesmo depois de crescida, eu ainda fazia, sempre que chovia. Virei para Samir, que estava igualmente fascinado. É lindo, ele falou para mim, e pude notar, graças aos feixes de luz lançados pelos raios, o mesmo olhar intenso de hoje cedo.
  Segurei a sua mão, com o coração disparado, e rezei para que a tempestade não acabasse e destruísse aqueles minutos, que pareciam um sonho.
  Senti o som dos trovões ecoar dentro do meu peito, com ele entrelaçando os seus dedos nos meus, com carinho. Qualquer dúvida que eu tinha sobre o que sentia morreu ali, com o calor da palma da sua mão contra a minha.
  Sim, eu me imaginei, por um segundo, fazendo aquilo com Samir outra vez, e todas as vezes que pudesse, só nós dois, ou com nossos filhos, no futuro.
   Futuro, pensei comigo, com os meus irmãos apontando para cima e ele ainda me encarando. Eu te daria todas as estrelas, se pudesse, me inclinei na sua direção e sussurrei bem perto do seu ouvido.
  Apenas acariciou o meu rosto, sem dizer nada, correndo os dedos ao redor meus lábios. Deus sabe que me entregaria ali mesmo, sem medo e nem arrependimento, mas a presença dos menores me impediu.
  Crianças, preciso ir, avisei e nos levantamos, ao som dos protestos infantis. Saímos e os deixei na guarda da babá, que os levou embora, com o eco da música tocando no saguão, junto com as vozes dos convidados. Samir caminhou atrás de mim, em silêncio, mas eu conseguia ouvir a sua respiração pesada.
  Lembrei que tinha que pegar um pote de doce que ficou para trás, na biblioteca, e fui até lá. O encontrei abandonado, no canto da poltrona, e antes de alcançar a maçaneta, ouvi a minha música favorita tocando.

— Ah, não, estou perdendo a minha música!
— Porque não dança comigo? — perguntou, e me arrepiei.
— Aqui?
— Sim, até porque pode acabar perdendo ela toda, se tentar chegar logo no saguão. Fora que já dançamos aqui antes.

  Prontamente, devolvi o pote ao lugar e Samir fechou a porta, mas ainda dava para ouvi-la claramente. Tu és, divina e graciosa, estátua majestosa do amor, a voz da cantora pronunciou e segurei firme na mão dele, deixando que me conduzisse devagar, num balanço suave, correndo a outra mão pelas minhas costas expostas.
   Olhei nos seus olhos tão fixos em mim e encostei a testa na sua, e o calor do seu corpo me envolveu. Da alma da mais linda flor, de mais ativo olor, que na vida é preferida pelo beija-flor. Logo, a mão estava na minha nuca e as minhas pernas bambas.
Tu és a forma ideal, estátua magistral, oh alma perenal do meu primeiro amor, sublime amor. Olhei mais uma vez para ele e senti que estava flutuando. Roçou o nariz no meu e esbocei um sorriso, assim como ele. És láctea estrela, és mãe da realeza; és tudo enfim que tem de belo, em todo resplendor da santa natureza.
   Corri a mão do seu ombro até a nuca e entrelacei os dedos nos seus fios negros, fazendo-o me encarar bem fundo. Minha boca estava tão seca! Oh meu Deus o quanto é triste, a incerteza de um amor, que mais me faz penar em esperar, em conduzir-te um dia, ao pé do altar.
  Pensei na porta, e que alguém poderia entrar a qualquer instante, mas com certeza Samir tinha trancado. Enfiou os dedos no meu cabelo e me rendi a um beijo intenso, como no outro dia, ali mesmo. Depois de remir meus desejos, em nuvens de beijos, hei de envolver-te até meu padecer, de todo fenecer.
  Enfiei a mão por dentro do seu paletó, abraçando-o, sentindo o seu calor me preencher. Senti o coração batendo tão acelerado que achei que explodiria. A música já tinha acabado e um samba tomou o seu lugar. Eu te amo, sussurrou, depois de afastar o rosto.
  Eu também te amo e faria qualquer coisa por você, falei sem dificuldade, com as palavras vindo lá do fundo, olhando-o fixo, e o seu olhar brilhou. Qualquer coisa, reforcei, e meu guarda-costas me beijou mais uma vez.
  Podem estar nos procurando, falou, me despertando. É melhor irmos, disse e saí do cômodo, com ele me seguindo. Samir recuou dois passos, assim que chegamos no saguão e envolvi Beatriz num abraço apertado.

— Meus parabéns, minha futura cunhadinha! Anda muito enjoada? — perguntei, perto do seu ouvido.
— Não, não sinto nadinha. Sâmia, muito obrigado por tudo! Sem você, eu não conheceria o Miguel. — falou, envolvendo o meu rosto com as mãos — Esqueceu de passar batom, querida?
— Ah, sim. Meus irmãos me acharam na hora e acabei esquecendo. — menti, já que nenhum batom sobreviveria ao beijo que dei, pouco antes.
— Falaram que era pouca gente, mas tem pessoas demais aqui! — soltou, incomodada.
— Tudo bem, vou com você e te apresento todo...
— Aí está você, meu bem! — meu irmão apareceu, levando a amada embora.

  Circulei pelo espaço, cumprimentando a todos, incluindo minha tia avó Esmeralda, que eu não suportava, e fez questão de me parar para um abraço.

— Oi, tia Mel!
— Oi, sobrinha! É tão bom o seu irmão finalmente estar se casando!
— Eu também estou muito feliz! — falei, sincera.
— Mas e você? Está passando da idade, mocinha.
— Tia, estou jovem, ainda. — respondi, tentando ser o mais amigável possível.
— Na sua idade, eu já tinha casado. Infelizmente, meu marido faleceu cedo e não tive filhos. Deus sabe o que faz.

  Dei graças a Deus pelo fato dela não ter gerado descendentes. Já pensou se fossem insuportáveis como ela?

— Tudo a seu tempo, tia.
— Seu pai contratou um guarda-costas. Como os rapazes vão chegar em você se tem alguém montando guarda?
— É para minha segurança.
— Por acaso é aquele homem ali? — apontou para Samir, parado num canto, impecável no smoking, correndo os olhos pelo espaço, até parar em mim — Ele é muito bonito. Vou lá me apresentar. — afirmou, passando a mão pelo cabelo curto grisalho, arrumado em ondas suaves.
— Tia, deixa ele quieto. — falei, segurando firme no seu braço, e ela encarou a minha mão — Não atrapalhe o seu trabalho. Aproveite a festa. — disse, com um sorriso meigo, olhando-a fundo, me afastando, em seguida.

  Peguei uma taça de champanhe e circulei, bebericando, até finalmente chegar no meu pai e a Madi, que conversavam com Daniel. Ele parecia tenso, e o outro me olhou, com um largo sorriso.

— Espero uma resposta, em breve, Alfredo. Oi, Sâmia. Você está linda. Vai ser um prazer conversarmos mais. Seu pai vai explicar tudo. — disse, ao se afastar.
— Pai, o que está acontecendo?
— Como você deixou isso acontecer, Alfredo? — Madi perguntou, num tom baixo — Como pode nos colocar nessa situação? E a Sâmia? Como ela fica?
— Gente, qual o problema? — perguntei, preocupada.

  Meu pai nos levou até o escritório, pálido. Não fazia ideia do que poderia tê-lo deixado nesse estado. Era algum problema com a empresa, só podia!

— Fala logo, Alfredo! — Madi exigiu, depois de fechar a porta — Ela tem o direito de saber!
— Saber o que?
— Eu devo muito dinheiro ao Daniel, filha, muito mesmo. Ele veio cobrar a dívida faz uns dias.
— Dinheiro que você perdeu em jogos! Me jurou que tinha parado!
— Pelo amor de Deus, pai, de quanto é essa dívida?
— O valor é maior do que o da nossa casa. Mas ele considera a dívida paga se você se casar com ele.  — confessou, e senti o mundo desabando.
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