𝟒𝟑. 𝑨𝒏𝒈𝒖́𝒔𝒕𝒊𝒂.

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                                 Samir

 

   Bati a porta do quarto, com a cabeça explodindo. Esfreguei o rosto, furioso, louco para aquele dia acabar logo. Sentei no chão, encostado na porta, odiando todos naquela casa. Me senti grato pelo fato da Érica não respirar mais, assim não me perturbaria com lamentos, toda vez que me via, ao invés de arrumar outro namorado.
   Me perguntei o que Sâmia estaria fazendo, naquele momento. Queria muito ligar, porém seríamos pegos. Resolvi levantar e cair na cama. Fechei os olhos, enfiando a mão no cabelo, lembrando da carícia dela. Sorri, instantaneamente, com o seu perfume picante na memória. Tarde demais, eu já te escolhi. O nó na garganta voltou a apertar, e me forcei a abandonar a lembrança.
  Devo ter dormido por horas, porque despertei com as batidas insistentes do meu pai na porta, chamando para o lanche da tarde. Joguei uma água no rosto e desci, me sentando com todos, pegando uma xícara de leite, bocejando longamente.
  Minha mãe me encarou, aborrecida, enquanto os outros o faziam de forma curiosa. Layla se aproximou, carregando uma travessa larga com Shoreek, e fez questão de colocar um no prato, à minha frente. Agradeci e observei aquele belo pãozinho que, por acaso, era algo que eu amava comer. Será que me achavam tão bobo assim?

— Então, sobrinho, você gostou? — tia Jamile perguntou, depois que terminei de mastigar.
— Gostei, sim, tia. Está ótimo, Layla. — elogiei, e ela sorriu, constrangida, sentada de frente para mim; só fazia isso, pensei.
— Muito obrigada, Samir! Esse pãozinho é o meu favorito!
— Jura? O meu também. — afirmei, sorrindo, lançando um rápido olhar incisivo para a minha irmã, sentada ao seu lado esquerdo, que disfarçou uma risada com uma tosse, enquanto eu tomava um gole de leite.
— Sempre que eu vier aqui, vou fazer para você. — prometeu, e a menção da palavra “sempre” não me animou, mas disfarcei; até que ela estava se esforçando — Seu pai comentou que, atualmente, você trabalha como guarda-costas. Como é?
— Bem, é um trabalho perigoso, até porque ninguém me protege. Tenho que ser um escudo humano, quando necessário.

  Pensei na hora em que Sâmia disse que seguiria pelo caminho das últimas consequências sempre que necessário, se isso significasse o meu bem estar. Ela fez o pior para me proteger. Não imagino ninguém mais fazendo isso por mim.

— Ah, eu acho muito corajoso! Qual a idade da menina que você vigia?
— 19 anos.
— E como ela é?

  Como eu poderia descrever a Sâmia sem lamentar o fato de desistir dela? Será que tinha uma maneira de explicar para a Layla, que não chegava aos seus pés, o quanto me tratava bem, era inteligente, simpática, apegada à família e me amava, apesar de eu ter feito tanta coisa ruim?
   Ela entendia o que eu sentia e simplesmente adorava a sua companhia. Daria qualquer coisa para estar nos seus braços de novo, ao invés de odiar cada segundo sentado ali, encarando essa jovem. Não devia ter te deixado. Sim, a Sâmia não prestava, mas eu não ligava: queria que fosse minha.

— É tipo a Zaina. — finalmente respondi, mentindo, obviamente, e ela começou a rir.
— Tipo eu, em que sentido? — minha irmã se manifestou, fingindo incômodo.
— Ambas são loucas. — disse, e todos caíram no riso.
— Bem, eu te acho muito normal. Tão simpático quanto a sua irmã. — afirmou, mexendo no cabelo — Como era a vida em Minas?
— Era tranquila. — falei, lembrando daquela escola estúpida e da queda inocente daquele patife da escadaria do sino — Viemos para cá quando tínhamos 15 anos. Meu pai recebeu uma proposta de trabalho.

Notei que meus pais e tia Jamile levantaram, discretamente, com a minha irmã, a contragosto, e Layla mudou para a cadeira ao meu lado, a pretexto de alcançar melhor o Shoreek.

— Eu gosto muito de me mudar. Foi estranho, para mim, no início, me adaptar ao Brasil, mas deu tudo certo, no fim.
— Mudanças realmente podem ser difíceis. Abrir mão do que se mais quer porque não é possível pertencer a você. — falei, reflexivo, pegando um pãozinho, e encarei Layla, com uma cara estranha.
— Às vezes, é bom abrir mão para ter algo melhor. A mudança é uma oportunidade de conhecer coisas novas. O que vem depois pode ser o que ficará para sempre. — afirmou, com um olhar meigo, se atrevendo a segurar na minha mão esquerda — Muitas vezes, temos que criar a oportunidade para algo nos pertencer eternamente.
— O que?

  Encarei-a, por alguns segundos. Criar a oportunidade, repeti, e notei que ela ficou desconfortável. Pertencer eternamente, sussurrei, com uma angústia crescendo em mim.

— Está se sentindo bem, Samir? — perguntou, ao ver minha expressão nada boa.
— Layla, me desculpa, mas não estou. Acho que vou deitar um pouco. — disse, me levantando.
— Quer algum remédio ou... — perguntou, pondo-se de pé, preocupada.
— Não, tudo bem. É dor de cabeça. Só preciso de... — suspirei — um pouco de silêncio. O Shoreek estava ótimo. Obrigada por ter feito. Com licença.

  Acelerei até o quarto e me tranquei lá, esfregando o rosto, com violência. Criar a  oportunidade, criar a oportunidade, murmurei sem parar, agarrando os cabelos, me sentindo o mais burro do mundo. Não podia ter desistido dela, não podia! A joguei nos braços daquele cretino!
  Seu idiota, idiota, me xinguei, dando voltas ao redor de mim, sufocando com o choro. As lágrimas caíram quentes e arremessei um dos travesseiros longe.  Não podia ter feito isso, não podia! Havia um jeito! Podia ter criado uma oportunidade para sermos um do outro eternamente!
  Procurei na minha bagagem o bilhete que ela me deixou, ao despertar, e reli com o peito pesado. Como pude me descuidar tanto! Fiquei tão preocupado em protegê-la que não enxerguei que havia uma solução! Com certeza, à essa altura, Sâmia já tinha falado com o Daniel, e os pais estariam comemorando o noivado.
  Preciso de mais, Samir, mais de você, a voz dela ecoou na minha cabeça, e pensei no seu olhar, ardente, ansiosa para ser possuída mais uma vez, com a imagem de nós dois ofegantes naquela cama estreita. Eu a perdi, a perdi, falei para mim, deitando sobre a cama, cansado de tudo aquilo. Não é justo! Não iria aceitar aquela jovem que estava aqui em casa, por mais gentil que fosse.
   Com certeza, meus pais se basearam no perfil da Érica para acharem o que me atrairia: bonita, jovem, ótima cozinheira e um amorzinho. Layla arrumaria as malas e sairia correndo daqui se soubesse as coisas que fiz. Vou me demitir, disse, contra o lençol, engasgando com a saliva.
  Me perdoa, Sâmia, por te abandonar. Apertei os olhos o quanto eu pude, sem me importar de sair daquele cômodo. Abracei o travesseiro que restava, com o bilhete ainda na mão e fechei os olhos, na esperança de que isso fizesse o sol nascer mais rápido.
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Hasan    Where stories live. Discover now