𝟖𝟖. 𝑵𝒊𝒕𝒆𝒓𝒐́𝒊, 𝒑𝒂𝒓𝒕𝒆 𝟏.

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Sexta-feira, 20 de setembro de 1957.

                                 Sâmia

Mesmo levando o meu diário na mala, não tive a menor disposição de escrever absolutamente nada por semanas, somente quando retornamos ao Brasil.
  Assim que chegamos em Roma e achamos um bom hotel, fomos até a Embaixada Brasileira dar entrada no nosso casamento. Depois passeamos nas ruas pavimentadas ladeadas pelas construções antigas, sentindo o aroma do sal do mar.
   Após uns dias, trocamos os votos, com o caseiro e a sua esposa como testemunhas. Então, finalmente seguimos para Positano, e encantei-me com a cidade litorânea, com seus moradores simpáticos e tranquilos.
  A casa dele ficava na parte alta, em tom branco envelhecido, com uma varanda, lindas roseiras e uma vista privilegiada do Mar Mediterrâneo.
  Acordar ao seu lado sem precisar mais fugir e viajar pelos países vizinhos com Samir fazendo questão de dizer a todos que eu era a sua esposa teve um significado totalmente especial para mim.
  Passamos na Grécia, de onde o meu amado enviou um cartão postal para a família, avisando que estava bem, e compramos presentes para todos, incluindo o bebê de Zaina e da Beatriz. Seguimos para Mônaco, e eu mandei um postal para o papai, assim não levantaria suspeitas sobre o nosso paradeiro. 
   Ao retornar para Roma, o meu marido me levou ao homem que o tatuou e decidi fazer uma pequena tatuagem no pulso esquerdo de duas asas com uma flor de Cicuta no centro, lembrando um pouco a que Samir tinha nas costas.  
  Tiramos todas as fotos possíveis, registrando cada segundo, incluindo um beijo na praia, em Positano. Voltar para Niterói foi bem chato, porque decidimos fingir não estarmos juntos, e ele me cortejaria como um simples namorado, para justificar a nossa proximidade e evitar um escândalo coletivo.
   Ao pisar em casa, na segunda-feira, bem cedo, meu pai abraçou-me apertado, seguido da Madi e da minha cunhada, pedindo milhares de explicações. Desfizeram-se em lágrimas, e garanti que estava bem. Contei do meu passeio por Mônaco e todos disseram que eu estava muito bronzeada.
  Claro que minha madrasta quase teve um derrame ao ver a minha tatuagem, alegando que aquilo era um sintoma de um possível trauma, o que tratei de negar.
  Estava louca para dizer que estava casada, mas infelizmente não podia. Nosso advogado conseguiu pegar de volta a minha antiga aliança, que eu logo venderia. Não queria nunca mais usar aquele lixo.
  Dei os presentes e fui para o quarto guardar no cofre a caixa de joias que meu marido me deu, com 5 colares e vários anéis, que ele pegou de uma governanta que acobertava as fugas da filha do seu chefe.
  Depois disso, peguei um dos carros na garagem e segui até a casa dos pais do Samir, levando as coisas que comprei para Zaina. Graças ao meu falecido maridinho, eu sabia dirigir. Por sorte, a encontrei lá, comendo um sanduíche, sentada confortável com a mãe e a tia Jamile fazendo tricô na sala de estar.

— Ah, muito obrigada pelos presentes! O Samir também mandou umas coisas da Grécia. Nem acredito que o jacu esteve lá! Ele ligou e disse que já está aqui no Rio. Daqui a pouco, chega para o almoço. — disse, após me receber e me chamar para caminhar no jardim.
— Que bom que ele chegou bem. A Matilde me falou, antes de eu viajar, que você estava grávida. Fiquei muito feliz com a notícia! Está bem?
— Ah, muito bem! O bebê se mexe bem e sinto muita fome. E você está bem? Foram dias turbulentos. A imprensa causou muita dor de cabeça.
— Causou sim, principalmente depois que anunciei a venda da casa do Daniel, nos jornais. Não dava para ficar com ela, depois de tudo. Estou com os meus pais, por enquanto.
— Olha, Sâmia, me responde uma coisa: você e meu irmão fugiram juntos e se casaram? — perguntou, irônica, o que me pegou de surpresa.
— Zaina, eu fui para Mônaco e o seu irmão estava na Grécia. Eram lugares bem diferentes. — desconversei — Porque acha isso?
— Ah, foi só um palpite, até porque nada os impediam de fazer isso. Eu sei que esse colar que você está usando foi um presente dele e que pediu a sua mão. E umas das roupinhas que você me deu tinha uma etiqueta em grego, como as que ele enviou.
— Pura coincidência, oras. — falei, dando de ombros, enquanto ela me olhava de um jeito engraçado.

  Segundos depois, ouvimos a animação da dona Soraya quando Samir chegou, também com sacolas de presentes. A tia evitou abraçá-lo, e rapidamente veio até a irmã, envolvendo-a num abraço, dando um beijo na sua barriga arredondada. Não resisti e o olhei de cima a baixo, com aquele bronzeado perfeito da Itália. Ele me cumprimentou amistoso, sem contato físico, e eu retribuí igualmente.

— Olha, Samir, eu ia perguntar mas prefiro não saber de nada.
— Como assim, Zaina? — questionou, então a irmã pegou a sua mão esquerda e apontou para a marca de aliança no dedo anelar, deixando-o sem reação — Oras, maninha, é só uma marca de sol. — disse, dando de ombros.
— Certo, é só uma marca de sol. E foi boa a viagem?
— Foi sim, e trouxe umas coisinhas para você e meu futuro sobrinho lindo! — afirmou, apertando as bochechas dela.

  Falei que já estava de partida, e que almoçaria em casa. Samir disse que me acompanharia até o portão, e ao notamos a varanda vazia, ele me puxou num canto e me beijou, afirmando sentir saudades, tanto quanto eu sentia.

— Quando vai passar a noite comigo de novo? — perguntou, sussurrando.
— Não seria apropriado, não somos casados, esqueceu? — respondi, irônica.
— Tem certeza que não? — rebateu, olhando-me fundo, e apenas sorri de volta.
— Que tal oficializarmos tudo em janeiro? Já está perto e não quero mais ficar me escondendo.
— Esse mês é perfeito! Quero contar para todo mundo sobre nós. — garantiu, acariciando o meu rosto, reconfortando-me — Odeio fingir que não te amo.
— Combinado, então. Me mande uma carta, será interessante ver a reação de todos. Vai dar certo.

  Nos despedimos, e antes de eu entrar no carro, dona Jamile me alcançou, nervosa.

— Moça, não faça isso. Não sabe aonde está se metendo!
— Do que está falando, senhora?
— Eu estava na sala e te vi beijando o Samir. — contou, o que me aborreceu — Ele só está te seduzindo, principalmente agora que o seu marido morreu, e é dona de uma fortuna imensa! Você não tem muita experiência em relacionamentos e com certeza está iludida pelo charme desse criminoso! Não se deixa enganar por ele! Não é quem você pensa!
— Ah, jura? — indaguei, aproximando-me dela, com um sorriso debochado — Pois eu acho que sabemos muito bem quem o Samir realmente é.
— Ele sempre quis matar o seu marido! O odiava e aproveitou o seu aniversário para executá-lo! 
— Exatamente, dona Jamile, e foi a melhor coisa que me aconteceu nesse ano. — afirmei, fazendo-a arregalar os olhos, chocada — A senhora é tão ingênua! Eu sei perfeitamente quem o seu sobrinho é, por isso que nos damos tão bem. O que vai dizer agora? Que ele jogou o colega da torre do sino, em Minas? — mencionei, e o medo tomou conta do seu olhar — Já sei de tudo isso, te garanto. Só gostaria de te pedir que nos ajude a cuidar da nossa vida juntos.
— Vida juntos? — questionou, cética — Quando vão se casar?
— Quando vamos ou quando nos casamos? — soltei, e ela me encarou, confusa — Olha, vou te dizer uma coisa, porque eu sei que sabe guardar segredo: nada mais vai me separar do Samir, não importa o que diga. A senhora pensa que me conhece, como todo mundo. Só o Samir realmente me entende, então serei clara: pare de nos importunar e finja não saber de nada, porque agora sou parte da família e tenho certeza que a dona Soraya não vai querer ouvir que a senhora se ofereceu para o próprio sobrinho. — ameacei, e notei que tentou achar uma resposta, enquanto algumas lágrimas enchiam os seus olhos — Fique fora do nosso caminho, dona Jamile.
— Você é tão cruel quanto ele. — falou, com a voz fraca, secando os olhos com os dedos.
— Não daria certo se fôssemos diferentes. Que bom que finalmente entendeu.

  Segui dali para o apartamento do Samir, na esperança que o meu vestido de noiva da Dior tivesse finalmente chegado. Eu e meu amado veríamos uma casa perto da sua família e continuaríamos com o planejamento do casamento aqui no Brasil. Ele disse que tinha joia para eu usar no dia, e sorri segurando o volante, ansiosa para saber como que era.
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Hasan    Where stories live. Discover now